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PARECER SN273/2007

Estadual

Judiciário

05/11/2007

DORJ-III, S-I, nº 231, p. 50

Silva, Andrea de Almeida Quintela da - Processo Administrativo: 264084; Ano: 2006

Dispoe sobre alteracao de registros civis de pessoa juridica de uma

Comarca para outra - Parecer.

Procedimento nº 2.006 - 264084 P A R E C E R Excelentíssimo Senhor Desembargador Corregedor-Geral da Justiça, Versa o presente procedimento de Consulta e Pedido de Providências, feito pela ARROW CONSULT ASSESSORIA EMPRESARIAL LTDA, inscrita no CPNPJ/MF sob o n.º 05.542.870/0001-06,Sociedade... Ver mais
Texto integral

Procedimento nº 2.006 - 264084

P A R E C E R

Excelentíssimo Senhor Desembargador Corregedor-Geral da Justiça,

Versa o presente procedimento de Consulta e Pedido de Providências, feito pela ARROW CONSULT ASSESSORIA EMPRESARIAL LTDA, inscrita no CPNPJ/MF sob o n.º 05.542.870/0001-06,Sociedade Simples Limitada, com sede na Rua XV de Novembro, n.º 270, sala 223, Rio Bonito - RJ, neste ato representada na forma do seu Contrato Social, pelo Sócio Administrador, Senhor Wilson Soares Mendes, inscrito no CRC/RJ n.º 57.114 e sua Sócia Déborah Gimenez, inscrita na OAB/RJ sob o n.º 115.929, nos seguintes termos: "...A requerente foi constituída em 27/02/2.003, com registro no RCPJ da cidade do Rio de Janeiro, sob a matrícula n.º 200.810 e teve sua posterior alteração contratual registrada no mesmo RCPJ em 30/11/2.004. Está por registrar sua segunda alteração contratual , a qual trata: a) Da transferência de registro do RCPJ da cidade do Rio de Janeiro para o Cartório da cidade de Rio de Bonito em atendimento ao NCC; b) Alteração de Objetivo Social; c) De movimentação societária, com a entrada de nova sócia; d) Da retificação do endereço da sede social da MATRIZ para Rua XV de novembro, n.º 262, sala 223, Centro, Rio Bonito/RJ. Ocorre que, sempre, todas as pessoas jurídicas eram registradas no Rio de Janeiro, independente do local de sua sede. Agora, para adequação ao Novo Código Civil, ao transferir o registro do RCPJ desta Comarca, o Cartório de Rio Bonito e de outras comarcas do interior deste estado, estão exigindo que sejam registrados novamente todos os atos já registrados no RCPJ da Capital, o que é, aos nossos olhos, um exagero, uma vez que tratam de atos juridicamente perfeitos, não necessitando de serem registrados novamente. Já mantivemos contato com a Tabeliã responsável pelo Cartório de Registro Civil de Rio Bonito e, mesmo apresentando a certidão de inteiro teor dos atos registrados no RCPJ da cidade Rio de Janeiro, tivemos recusado, de forma verbal, nosso pedido de registro do último ato em diante, ou seja, no presente caso, registro em Rio Bonito a partir da segunda alteração contratual. O mesmo fato já ocorreu com nossos clientes (recibos anexos), os quais foram obrigados a pagar todos os registros novamente como se os atos registrados no RCPJ do Rio de Janeiro de nada valessem. A alegação daquele ofício é de que a Receita Federal quer que o Cartório tenha cópia de todos os atos registrados, desde o ato constitutivo da pessoa jurídica até o último. Então surgem os questionamentos: a) Por que não arquivar em Rio Bonito uma cópia autenticada de cada ato já registrado em outro ofício deste mesmo Estado, meramente para fins de consultas futuras? b) Por que devemos registrar tudo novamente, pagando caro por essa duplicidade? c) E os gastos que tivemos no primeiro registro e alterações seguintes, quem devolverá? d) Se não era permitido o registro no RCPJ do Rio de Janeiro, porque foi aceito o Registro? e) O RCPJ do Rio de Janeiro vai devolver os valores já pagos? f) Qual é norma que regulamenta esse trâmite de transferência de registro? g) Em Rio Bonito o Cartório está obedecendo a orientações verbais de quem? h) É justo o Cartório locupletar-se duplamente e a Requerente ser prejudicada com má interpretação da nova legislação? Isto posto, requer a V. Sª seja analisada a situação exposta e, em atendimento a esta consulta e questionamentos acima, seja regulamentado o procedimento dos Cartórios de Registros de Pessoas Jurídicas do Estado do Rio de Janeiro, nestes casos de transferência de registro de uma cidade para outra, no sentido de se exigir apenas certidão de inteiro teor do cartório de origem e o registro somente do último ato, não somente por entendermos de direito, mas também ser uma questão de justiça".

Endereçados os autos primeiramente a antiga Divisão de Inspeção e Apoio Cartorário Extrajudicial - DIAEX, se manifestam da seguinte forma:

"Trata-se de reclamação em face do Cartório do 1º Ofício de Rio Bonito que recusou a efetuar a transferência do Registro Civil de uma Sociedade Ltda do Rio de Janeiro paro o Rio Bonito, nos termos do atual Código Civil. A Serventia tem exigido que todos os atos sejam novamente registrados recusando-se verbalmente a proceder ao registro a partir do último ato constante da certidão de inteiro teor. Tendo em vista que a recusa não foi expressa, conforme informação dos consulentes às fls. 02, sugerimos seja oficiada a Titular do referido Cartório para que se manifeste acerca dos fatos noticiados no presente feito...".

É lançado despacho da ilustríssima Senhora Diretora daquele Departamento, no intuito de instruir o presente procedimento, o seguinte despacho: "Oficie-se conforme sugerido".

Instada a Delegatária para se manifestar, protocola-se junto a esta Corregedoria-Geral da Justiça o expediente sob o n.º 2.006.297414, apresentando sua defesa nos seguintes moldes: "... que a consulta formulada perante essa E. Corregedoria, objeto do processo n.º 2.006.264084, seja encaminhada a Douta Vara de Registros Públicos desta Comarca de Rio Bonito, conforme preceitua o inciso III do artigo 89, Livro I, do CODJERJ, e, bem como, já é entendimento por parte desse E. Órgão. Apenas cabe ressaltar que a matéria, embora de natureza administrativa, deve passar pelo crivo judicial, tendo, portanto, competência jurisdicional.".

Mais adiante é instada novamente a Delegatária da referida Serventia, com o intuito agora que a mesma se manifeste quanto ao mérito do Pedido de Providências, sendo protocolado o requerimento sob o n.º 2.007.046536, devidamente entranhado no procedimento principal (2.006.264084), em aditamento a sua resposta inicial, prestando os seguintes esclarecimentos: "...Ocorre que a Lei n.º 10.406, de 10.01.2002, do Código Civil, provocou profundas mudanças no que tange à matéria tratada pelo Código Comercial. Na verdade, o novo Código Civil revogou não apenas o Código Civil de 1.916, como quase todo o Código Comercial de 1.850, salvo no que concerne ao Direito Marítimo, passando a reunir em um mesmo corpo de leis, e sob os mesmos princípios, a matéria comercial e a matéria civil. Desta forma, foi rompido o critério anteriormente estabelecido, qual seja, o critério da comercialidade ( Teoria dos Atos de Comércio), sendo substituído pelo da Empresarialidade ( Teoria da Empresa). Assim, foi também reformulada a classificação das sociedades, que passaram a chamar-se de empresárias e simples. Bem, por oportuno, são estas últimas, que, de fato, nos interessam particularmente. Isto porque, conforme já é de conhecimento, são exatamente estas que devem ter seus atos constitutivos arquivados e registrados nos Cartórios de Registro Civil de Pessoas Jurídicas. Continuando, o novo Código Civil trouxe no seu artigo 998 a seguinte regra: " Nos trinta dias subseqüentes à sua constituição, a sociedade deverá requerer a inscrição do contrato social no Registro Civil das Pessoas Jurídicas do local de sua sede". (grifos nossos). No entanto, cabe aqui explicar que, o que para alguns, trata-se de uma inovação, na verdade, assim não o é, uma vez que o Código Comercial de 1.850 já continha dispositivo legal semelhante, senão vejamos: " Art. 301 - O teor do contrato deve ser lançado no Registro do Comércio do Tribunal do distrito em que se houver de estabelecer a casa comercial da sociedade (art. 10, n.º 2), e se esta tiver outras casas de comércio em diversos distritos, em todos eles terá lugar o registro". (grifos nossos). Portanto, pode-se concluir que o andamento legal sempre foi no sentido de se registrar e arquivar os atos constitutivos de uma sociedade no local de sua sede. Aliás, diga-se que, além da previsão legal, a opinião da Doutrina também sempre acompanhou este entendimento, como bem nos ensina Fran Martins: "O Código Comercial, no art. 301, determina que os contratos das sociedades de pessoas ou sociedades contratuais devem ser arquivados no Registro de Comércio da sede do estabelecimento comercial; o prazo para esse arquivamento que era de 15 dias da data do contrato, segundo o art. 10, n.º 2, do referido Código, hoje é de 30 dias (art. 73 do Dec. n.º 57.651)". (grifos nossos). Além disso, cabe ressaltar que esse entendimento decorre também de uma interpretação coerente e lógica do sistema jurídico. Caso assim não se entendesse, poder-si-iam registrar os atos de uma sociedade, com domicílio de sua sede em um Município deste Estado, em qualquer outro Estado, o que feriria frontalmente um dos princípios norteadores e reguladores de todo o sistema de Registro Públicos, qual seja, o princípio da territorialidade. Inclusive, em termos práticos, vale citar um exemplo do que o não atendimento a esta regra pode causar em termos e danos, fraudes: esta Serventia recebe, mensalmente, vários ofícios encaminhados por órgãos como o Ministério do Trabalho, Ministério da Fazenda, Receita Federal, Instituto Nacional da Seguridade Social - INSS, dentre outros, por meio dos quais é solicitada certidão de inteiro teor dos atos constitutivos de inúmeras sociedades, que teriam como sede de seu domicílio Rio Bonito. Estas certidões serviriam de primordial ajuda para levantar dados sobre os sócios destas sociedades, ou para instruírem processos, dívidas fiscais etc. No entanto, o que lamentavelmente ocorre é que essas sociedades, na grande maioria das vezes, não têm qualquer ato arquivado nesta Serventia, em desobediência ao que preceitua a lei. Com isso, só nos resta a dar a informação "Nada consta" e torcer para que estas autoridades logrem êxito em obter referidos dados em algum Cartório, após, certamente, sucessivas buscas. Desta forma, data vênia, no nosso entender, se esta Serventia aceitasse o registro de outros atos, que foram feitos por uma Serventia incompetente para tal, estaria ratificando aquele equívoco cometido, o que não se deve aceitar. Nesse sentido, entendo que o procedimento deste Cartório em exigir que as sociedades tenham seus atos registrados neste Município, a partir do momento em que restou consignado no respectivo ato esta escolha de sede, é correto e legal, haja vista que segue a inteligência do preceito legal, bem como do próprio sistema registrário, isto é, atende ao princípio da territorialidade...".

Mais adiante instado agora o Delegatário do Registro Civil das Pessoas Jurídicas da Comarca da Capital, apresenta sua resposta nos seguintes termos: "...Quanto ao critério de registro de sociedades simples face exigência do art. 997 do CCB, pelo artigo 983 do mesmo CCB elas podem reger-se pelas normas próprias do art. 997 ao 1038 ou optar por um dos tipos regulados nos artigos 1039 a 1092. Feita a opção da sociedade simples pelo tipo limitada deve obedecer aos arts. 1052 a 1087, fora hipóteses do parágrafo único do art. 983. Quanto ao critério para o registro aqui de sociedade com sede em outra cidade, os usuários do RCPJ, especialmente profissionais contadores e advogados, sempre optaram pelo registro da pessoa jurídica constituída onde esteja sua administração ou direção contábil ou jurídica, mesmo que a sede fosse declarada em outra cidade. A Corregedoria da Justiça admitiu a possibilidade deste registro interpretando a lei de Registros Públicos em consulta feita por Oficial de Niterói ( DO de 14/7/99 anexo). Após 11 de janeiro de 2003 quando entrou em vigor a lei 10406/02 às partes interessadas continuaram a requerer registro no RCPJ de sociedades com sede em outro local, argumentando que a lei de Registros Públicos é lei especial em relação ao Código Civil que é lei geral; que podiam fazê-lo uma vez que elegeram no ato constitutivo a cidade como domicílio especial com base no art. 75, IV da nova lei, sendo o domicílio eleito à sede real da organização e também porque ainda não vencera o prazo para adaptação do art. 2031 ( depois prorrogado até 11 de janeiro 2007 pela lei 11.127 de 28/06/05). Adotamos o critério de que só seria aceito contrato social para registro com menção expressa a domicílio na cidade do Rio de Janeiro. Esse critério foi utilizado até ano passado e contra ele foi impetrado mandado de segurança na 1ª Vara da Fazenda Pública processo 2005.001.155977-7 ( a informação do RCPJ e a petição inicial vão anexas). À vista da contestação judicial do critério e de casos como o de que trata o presente processo, não registramos desde julho de 2006 sociedades com sede em outra cidade, mesmo com declaração de domicílio ou atividades no Rio de Janeiro...".

Endereçado o presente procedimento a Divisão de Instrução e Pareceres para Serventias Extrajudiciais, sugere que seja oficiado ao Cartório do 1º Ofício de Justiça de Rio Bonito, comunicando acerca do descabimento de suas exigências (fls. 56/57).

Eis o relatório do presente procedimento.

Saliente-se, de início, que incumbe ao oficial registrador impedir o registro de título que não satisfaça os requisitos exigidos pela lei, quer sejam consubstanciados em instrumento público ou particular, quer em atos judiciais.

Fazendo uma pesquisa junto ao site http://www.irtdpjbrasil.com.br/parecerfabio.htm, é apresentado o seguinte parecer do Dr. Fabio Ulhoa Coelho, a requerimento do Instituto de Registro de Títulos e Documentos e de Pessoas Jurídicas do Brasil, sobre o alcance de alguns dos dispositivos do novo Código Civil ( Lei n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2.002) atinentes ao direito de empresa que dizem respeito ao registro das sociedades simples:

"PARECER

O Instituto de Registro de Títulos e Documentos e de Pessoas Jurídicas do Brasil, o Centro de Estudos e Distribuição de Títulos e Documentos de São Paulo, o Registro Civil das Pessoas Jurídicas do Rio de Janeiro consultam-me sobre o alcance de alguns dos dispositivos do novo Código Civil (Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002) atinentes ao direito de empresa que dizem respeito ao registro das sociedades simples.

Como sabido, uma das significativas inovações do Código Reale se encontra na introdução, no direito brasileiro, da figura da "sociedade simples", disciplinada nos arts. 997 a 1.038 e em outros dispositivos do Livro II da Parte Especial. Trata-se de mudança de relevo, que tem despertado dúvidas que os consulentes desejam aclarar. Estas dúvidas centram-se, fundamentalmente, na sociedade que, embora venda bens e preste serviços, não o faz empresarialmente, nas sociedades holding puras que não adotam a forma de anônima e cooperativas.

Os consulentes submetem-me quesitos, que são apresentados e respondidos no final do Parecer. Para bem alicerçar as respostas dadas, convém sejam examinados alguns temas fundamentais do direito empresarial: a teoria da empresa, sua introdução no direito brasileiro e a distinção entre sociedades simples e empresárias.

1. A teoria da empresa

Até a Segunda Grande Guerra, o espírito de integração econômica e união política que viceja hoje na Europa era simplesmente impensável. Além de viverem em constante estado de beligerância, competindo por colônias fornecedoras de matéria prima e consumidoras de produtos industrializados, os principais povos europeus procuravam se distanciar uns dos outros no plano cultural, marcando ou acentuando características que reivindicavam como únicas. As leis e a doutrina jurídica de direito privado, nesse contexto, serviam de campo fértil para as manifestações de afirmação nacional. O Código Civil alemão, que entrou em vigor no dia 1º de janeiro de 1900, revestiu de uma estrutura peculiar, notavelmente diversa da do monumental Código Napoleão, de 1804. Naquele, ademais, um dos conceitos nucleares é o de "negócio jurídico" (Rechtsgeschäft), cuja diferença em relação ao de "ato jurídico" (acte juridique), construído pela doutrina francesa, é extremamente sutil (1 ). Não se trata, como querem alguns autores, de noções cientificamente evoluídas uma da outra, mas apenas de diferentes modos de cuidar do mesmo assunto, dando ênfase a aspectos distintos. Ainda hoje, aliás, ensina-se direito civil em França sem a menor referência ao conceito de "negócio jurídico" (2 ).

A Itália daquele tempo também buscou na lei e na teoria jurídica de direito privado elementos de afirmação da nacionalidade, em contraposição aos demais povos de maior presença econômica e cultural da Europa. Assim, ao reformular seu Código Civil em plena guerra, em 1942, produziu um diploma afastado tanto da estrutura francesa quanto da alemã, em que se apresenta como particular inovação a disciplina de matérias até então afetas, na cultura jurídica européia, ao direito comercial (e tratadas, por isto, em códigos próprios).

A teoria da empresa deve ser compreendida neste contexto de afirmação da nacionalidade italiana, num mundo em que a Europa ainda não tinha se deparado com a necessidade de um processo de integração econômica e progressiva unidade política. Esta teoria se contrapõe à dos atos de comércio - de origem francesa e parcialmente adotada pelo Código de Comércio do Reino da Itália de 1882 - como critério distintivo do âmbito de incidência do direito comercial (3 ).

Na Itália, a bipartição da disciplina privada das atividades econômicas começa a preocupar a doutrina jurídica ainda no final do século passado, sendo significativa a este respeito a defesa por Vivante, na aula inaugural de seu curso na Universidade de Bolonha, em 1892 (4 ), da tese do fim da autonomia do direito comercial. Suscitou, então, cinco argumentos em favor da superação da divisão básica no direito privado. De início, questionou a sujeição de não-comerciantes (os consumidores) a regras elaboradas a partir de práticas mercantis desenvolvidas pelos comerciantes e em seu próprio interesse. Como cidadão, deplorou o fato de o Código Comercial, considerado por ele lei de classe, perturbar a solidariedade social, que deveria ser o objetivo supremo do legislador. Em segundo lugar, lembrou que a autonomia do direito comercial importava desnecessária litigiosidade para a prévia discussão da natureza civil ou mercantil do foro, na definição de prazos, ritos processuais e regras de competência. Outra razão invocada para a superação da dicotomia foi a insegurança decorrente do caráter exemplificativo do elenco dos atos de comércio. Uma pessoa, que pensava exercer atividade civil, podia ser surpreendida com a declaração de sua falência, inclusive em função de inesperados desdobramentos penais. Também pretendia Vivante que a duplicidade de disciplinas sobre idênticos assuntos era fonte de dificuldades. Por fim, a autonomia do direito comercial atuava negativamente no progresso científico, na medida em que o estudioso da matéria comercial perdia a noção geral do direito das obrigações (5 ).

Em 1942, o Código Civil italiano passou a disciplinar, como afirmado, tanto a matéria civil como a comercial, criando, assim, uma estrutura única para o diploma básico do direito privado, que o diferenciava de seus congêneres francês e alemão (6 ). A teoria da empresa passou a ser vista como a consagração da tese da unificação do direito privado (7 ).

A teoria da empresa, contudo, bem examinada, apenas desloca a fronteira entre os regimes civil e comercial.

No sistema francês, excluem-se atividades de grande importância econômica - como a prestação de serviços, agricultura, pecuária, negociação imobiliária - do âmbito de incidência do direito mercantil, ao passo que, no italiano, reserva-se disciplina específica para algumas atividades de menor expressão econômica, tais as dos profissionais liberais ou dos pequenos comerciantes.

A teoria da empresa é, sem dúvida, um novo modelo de disciplina privada da economia, mais adequado à realidade do capitalismo superior. Mas através dela não se supera, totalmente, um certo tratamento diferenciado das atividades econômicas. O acento da diferenciação deixa de ser posto no gênero da atividade e passa para a medida de sua importância econômica. Por isso é mais apropriado entender a elaboração da teoria da empresa como o núcleo de um sistema novo de disciplina privada da atividade econômica e não como expressão da unificação dos direitos comercial e civil.

O sistema italiano de disciplina privada da atividade econômica, sintetizado pela teoria da empresa, acabou superando o francês, baseado na teoria dos atos de comércio; ou seja, legislações de direito privado, nos países de tradição românica, sobre matéria econômica, a partir de meados do século XX, não têm mais dividido os empreendimentos em duas categorias (civis e comerciais), para submetê-los a regimes distintos. A isso, têm preferido os legisladores criar um regime geral para a disciplina privada da economia, excepcionando algumas atividades de menor expressão econômica.

A teoria dos atos de comércio vê-se, então, substituída pela teoria da empresa, ainda que não se adotem, na lei ou na doutrina, exatamente estas designações para fazer referência, respectivamente, ao modelo francês de partição das atividades, ou ao italiano, de regime geral parcialmente excepcionado. Até mesmo em França, onde nasceu, o sistema de dupla disciplina privada das atividades econômicas se encontra hoje bastante descaracterizado, já que se submetem à jurisdição comercial, independentemente de seu objeto, as sociedades anônimas (desde 1893), de responsabilidade limitada (desde 1925) e as em nome coletivo e em comandita (desde 1966), o que, concretamente, aproxima a legislação francesa ao modelo italiano.

Para bem compreender o alcance da significativa mudança operada pela evolução da teoria francesa para a italiana, é imprescindível esclarecer o conceito de empresa, matéria ao qual se volta o item seguinte deste Parecer.

2. Conceito de empresa

Conceitua-se empresa como sendo atividade, cuja marca essencial é a obtenção de lucros com o oferecimento ao mercado de bens ou serviços, gerados estes mediante a organização dos fatores de produção (força de trabalho, matéria-prima, capital e tecnologia). Esse modo de conceituar empresa, em torno de uma peculiar atividade, embora não seja totalmente isento de imprecisões, é corrente hoje em dia entre os doutrinadores (8 ). No passado, contudo, muito se discutiu sobre a unidade da noção jurídica da empresa, que era vista como resultante de diferentes fatores, objetivos e subjetivos (9 ). Certo entendimento bastante prestigiado considerava-a, em termos jurídicos, um conceito plurivalente.

Para um dos expoentes da doutrina italiana sobre a empresa, Alberto Asquini (10 ), não se deve pressupor que o fenômeno econômico poliédrico da empresa necessariamente ingresse no direito por um esquema unitário, tal como ocorre na ciência econômica. No emaranhado de teorias jurídicas na doutrina comercialista italiana da primeira metade do século passado, Asquini encontra o que parecia ser a chave para a questão: a consideração da empresa como um "fenômeno econômico poliédrico". Dizia o jurista italiano:

O conceito de empresa é o conceito de um fenômeno econômico poliédrico, o qual tem sob o aspecto jurídico, não um, mas diversos perfis em relação aos diversos elementos que o integram. As definições jurídicas de empresa podem, portanto, ser diversas, segundo o diferente perfil, pelo qual o fenômeno econômico é encarado. (11)

Baseando-se, então, no multifacetado fenômeno econômico da empresa, Asquini distinguia quatro perfis: subjetivo, funcional, patrimonial (ou objetivo) e corporativo.

Pelo primeiro perfil, a empresa é vista como empresário, isto é, como o exercente de atividade autônoma, de caráter organizativo e com assunção de risco. Neste caso, a pessoa (física ou jurídica) que organiza a produção ou circulação de bens ou serviços é identificada com a própria empresa. Corresponde este perfil subjetivo a certo uso coloquial da palavra ("a empresa faliu", "a empresa está contratando pessoal" etc). Segundo Asquini:

Na economia de troca o caráter profissional da atividade do empresário é um elemento natural da empresa. O princípio da divisão do trabalho e a necessidade de repartir no tempo as despesas da organização inicial, de fato, orientam naturalmente o empresário, para especializar sua função através de uma atividade em série, dando lugar a uma organização duradoura, normalmente, com escopo de ganho. (12 )

Pelo perfil funcional, identifica-se a empresa à própria atividade. Neste caso, o conceito é sinônimo de empreendimento e denota uma abstração (13 ), um conjunto de atos racionais e seriais organizados pelo empresário com vistas à produção ou circulação de bens ou serviços. É este perfil da empresa que a evolução doutrinária da teoria irá prestigiar. Para Asquini, porém, ele é apenas um dos conceitos jurídicos atribuíveis ao fenômeno:

Em razão da empresa econômica ser uma organização produtiva que opera por definição, no tempo, guiada pela atividade do empresário, é que, sob o ponto de vista funcional ou dinâmico, a empresa aparece como aquela força em movimento que é a atividade empresarial dirigida para um determinado escopo produtivo. (14 )

Pelo terceiro perfil, a empresa corresponde ao patrimônio aziendal ou estabelecimento. É o conceito objetivo, muitas vezes correspondente ao uso coloquial do termo ("vou à empresa", "a empresa fica em São Paulo", etc), que a identifica com o local em que a atividade econômica de produção ou circulação de bens ou serviços é explorada. Neste sentido, Asquini pondera:

O fenômeno econômico da empresa, projetado sobre o terreno patrimonial, dá lugar a um patrimônio especial distinto, por seu escopo, do restante patrimônio do empresário (exceto se o empresário é pessoa jurídica, constituída para o exercício de uma determinada atividade empresarial, caso em que o patrimônio integral da pessoa jurídica serve àquele escopo). (15 )

E, por fim, pelo perfil corporativo, a empresa é considerada, na formulação asquiniana, uma instituição, na medida em que reúne pessoas - empresário e seus empregados - com propósitos comuns. Asquini reputava que:

O empresário e os seus colaboradores dirigentes, funcionários, operários, não são de fato, simplesmente, uma pluralidade de pessoas ligadas entre si por uma soma de relações individuais de trabalho, com fim individual; mas formam um núcleo social organizado, em função de um fim econômico comum, no qual se fundem os fins individuais do empresário e dos singulares colaboradores: a obtenção do melhor resultado econômico na produção. (16 )

A visão multifacetária da empresa proposta por Asquini, sem dúvida, recebeu apoio entusiasmado da doutrina. Para Sylvio Marcondes, por exemplo:

Estes perfis jurídicos do conceito econômico de empresa são obra do grande comercialista italiano Alberto Asquini, que resolveu uma pendência na doutrina italiana, dividida em inúmeras correntes, cada qual pretendendo que a sua fosse a verdadeira conceituação de empresa, em termos jurídicos. A tese de Asquini, hoje generalizadamente acolhida, é de que a empresa tem um conceito unitário econômico, mas não um conceito unitário jurídico, porque a lei ora a trata como uma, ora, como outra. (17 )

É certo que a teoria asquiniana da empresa como conceito multifacetado ainda repercute na doutrina produzida atualmente nos países de tradição românica (18 ). Mas dos quatro perfis delineados por Asquini, a rigor, apenas o funcional realmente corresponde a um conceito jurídico próprio. A evolução da teoria da empresa, porém, implicou a paulatina desconsideração dos perfis subjetivo, objetivo e corporativo. Concentraram-se, com efeito, os autores no perfil funcional como sendo o conceito jurídico mais apropriado para a empresa.

Os perfis subjetivo e objetivo não são mais que uma outra denominação para os conhecidos institutos de sujeito de direito (empresário) e estabelecimento. O perfil corporativo, por sua vez, sequer corresponde a algum dado de realidade, pois a idéia de identidade de propósitos a reunir na empresa proletários e capitalista apenas existe em ideologias populistas de direita, ou totalitárias (como a fascista).

Segundo Francisco Ferrara:

O problema [do conceito de empresa] foi analisado deste modo por Asquini, que fez uma cuidadosa investigação sobre o assunto, chegando ao resultado de que a palavra empresa tem no Código diferentes significados, usados em acepções diversas: umas vezes para indicar o sujeito que exercita a atividade organizada; outras, o conjunto de bens organizados; outras, ainda, o exercício da atividade organizada e, finalmente, a organização de pessoas que exercitam em colaboração a atividade econômica. Todavia, (...) nenhuma norma se pode encontrar, com segurança, em que a palavra empresa possa ser utilizada no último sentido, de organização de pessoal, porque, na realidade, os quatro sentidos do termo - os quatro perfis de que falou Asquini - se reduzem a três. Pode-se observar, porém, que, fora dos casos em que a palavra se emprega em sentido impróprio e figurado de empresário ou de estabelecimento, e que deve o intérprete retificar, a única significação que resta é a da atividade econômica organizada (...). (19 )

De fato, como destaca Waldírio Bulgarelli:

Não há dúvida (...) de que o perfil que ganhou mais relevo foi o da atividade econômica organizada, que veio merecendo os favores da doutrina, inclusive da mais atual e não só na Itália (...), que decididamente nela assenta a construção da teoria jurídica da empresa, deduzida do conceito de empresário e vinculada à do estabelecimento. (20 )

Na verdade, no direito brasileiro "empresa" deve forçosamente ser definida como atividade, uma vez que há conceitos legais próprios para empresário (CC, art. 966) e estabelecimento (CC, art. 1.142) (21 ). Estas faces do poliédrico fenômeno descrito por Asquini, entre nós, devem ser adequadamente referidas pelos termos que o legislador a elas reservou. Ademais, como deflui do conceito legal de empresário, "empresa" só pode ser entendida mesmo como uma atividade revestida de duas características singulares: é econômica e é organizada. O significado destas características será objeto do próximo item deste Parecer.

3. A teoria da empresa no direito brasileiro

O legislador brasileiro, a exemplo do italiano que o inspirou em muitos aspectos, não define empresa, mas sim empresário. Segundo o art. 966, caput, do Código Civil:

Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou serviços.

É possível extrair-se, deste conceito legal de empresário, o de empresa. Se empresário é definido como o profissional exercente de "atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços", a empresa somente pode ser a atividade com estas características.

Destacam-se da definição de empresa as noções de atividade econômica organizada e produção ou circulação de bens ou serviços. Convém examinar com mais vagar cada uma delas.

Começo por aclarar o que a empresa não é; isto se faz necessário porque, na linguagem cotidiana, mesmo nos meios jurídicos e até na lei, usa-se freqüentemente a expressão "empresa" com significados diferentes de atividade.

Se se afirma, por exemplo, que "a empresa faliu" ou que "adquiriu estoque", a expressão é empregada erradamente, de forma não-técnica. A empresa, sendo atividade, não pode ser confundida com o sujeito de direito que a explora, o empresário. É esta pessoa (física ou jurídica) que pode ter a falência decretada ou realizar negócio jurídico de compra de mercadorias. Como destacado no item anterior, "empresa" não é o conceito jurídico apropriado para se referir ao seu perfil subjetivo. Quando se pretende fazer referência ao sujeito de direito que organiza a empresa, deve-se usar, quando explorada a atividade individualmente, "empresário individual"; e, quando explorada por pessoa jurídica, "sociedade empresária".

Similarmente, se alguém exclama "a empresa está pegando fogo!" ou constata "a empresa foi reformada, ficou mais bonita", está também se valendo do termo "empresa" equivocadamente. A empresa, sendo atividade, não se confunde com o local em que é exercida. Já se deu ênfase à impropriedade de se chamar de "empresa" o que Asquini considerava ser o seu aspecto objetivo. O conceito correto, neste caso, é o de "estabelecimento empresarial".

Por fim - e aqui trato de equívoco bastante usual nos meios jurídicos que, a partir da entrada em vigor do novo Código Civil, convém descartar -, também é inapropriado o uso da expressão "empresa" como sinônimo de "sociedade". Tecnicamente, não se deve dizer "separam-se os bens da empresa e os dos sócios em patrimônios distintos", mas "separam-se os bens sociais e os dos sócios"; não é correto falar "fulano e beltrano abriram uma empresa", mas "eles contrataram uma sociedade" (22 ).

Quanto a este uso não-técnico da expressão, convém, aliás, atentar-se às lições de Rubens Requião:

A principal distinção, e mais didática, entre empresa e sociedade comercial é a que vê na sociedade o sujeito de direito, e na empresa, mesmo como exercício de atividade, o objeto de direito. Com efeito, a sociedade comercial, desde que esteja constituída nos termos da lei, adquire categoria de pessoa jurídica. Torna-se capaz de direitos e obrigações. A sociedade comercial, assim, é empresário, jamais empresa. É a sociedade comercial, como empresário, que irá exercitar a atividade produtiva. (23 )

Feitas estas distinções (quer dizer, relembrando o que a empresa não é) e retomando o conceito de empresa que se pode concluir do art. 966 do Código Civil, destaco que ele se refere à atividade econômica organizada.

A primeira característica da empresa (ser uma atividade "econômica") não costuma despertar dificuldades: a atividade empresarial é econômica no sentido de que é apta a gerar lucro para quem a explora (24 ). Ou, nos termos propugnados por Sylvio Marcondes (redator do Livro II do projeto do Código Civil):

Este conceito [do Projeto de 1965] conjuga, ou nele se conjugam, três elementos que formam a noção de empresário. Em primeiro lugar, trata-se de atividade econômica, isto é, atividade referente à criação de riquezas, bens ou serviços. A economicidade da atividade está na criação de riquezas; de modo que aquele que profissionalmente exerce qualquer atividade que não seja econômica ou não seja atividade de produção de riquezas, não é empresário. (25 )

Já a delimitação dos contornos da segunda característica da empresa (ser uma atividade "organizada") é um tanto mais complexa.

A empresa é atividade organizada no sentido de que nela se encontram articulados, pelo empresário (que a organiza), os quatro fatores de produção: capital, mão-de-obra, insumos e tecnologia.

Waldírio Bulgarelli adverte:

O que caracteriza, em termos pragmáticos, a empresa, não é a própria organização em si, mas a forma de produzir organizadamente, o que não é o mesmo que organização da atividade de produção. Em termos históricos, por exemplo, é incontestável que a perspectiva pela qual se deve ver a empresa é justamente a da evolução das técnicas de produção, portanto, forma de produzir que de rudimentar familiar e artesanal, passou a ser mecanizada ou maquinizada, com mão de obra alheia e com maior grau de organização, já que esta última sempre existiu e existe em qualquer tipo de trabalho. (26 )

A noção de organização, ínsita à idéia de empresa, envolve, portanto, um certo grau de sofisticação da produção ou circulação de bens ou serviços. Sylvio Marcondes é claro ao definir esta característica da atividade empresarial, em prosseguimento à lição acima transcrita:

Em segundo lugar, esta atividade deve ser organizada, isto é, atividade em que se coordenam e se organizam os fatores da produção: trabalho, natureza, capital. É a conjugação desses fatores, para a produção de bens ou de serviços, que constitui a atividade considerada organizada, nos termos do preceito do Projeto. (27 )

Rubens Requião, por sua vez, sintetiza:

O empresário assim organiza a sua atividade, coordenando os seus bens (capital) com o trabalho aliciado de outrem. Eis a organização. Mas essa organização, em si, o que é? Constitui apenas um complexo de bens e um conjunto de pessoal inativo. Esses elementos - bens e pessoal - não se juntam por si; é necessário que sobre eles, devidamente organizados, atue o empresário, dinamizando a organização, imprimindo-lhes atividade que levará à produção. Tanto o capital do empresário como o pessoal que irá trabalhar nada mais são isoladamente do que bens e pessoas. A empresa somente nasce quando se inicia a atividade sob a orientação do empresário. Dessa explicação surge nítida a idéia de que a empresa é essa organização dos fatores de produção exercida, posta a funcionar, pelo empresário. Desaparecendo o exercício da atividade organizada do empresário, desaparece, ipso facto, a empresa. (28 )

Assim, não é empresário quem explora atividade de produção ou circulação de bens ou serviços sem alguns desses fatores de produção. O comerciante de perfumes que leva ele mesmo, à sacola, os produtos até os locais de trabalho ou residência dos potenciais consumidores explora atividade de circulação de bens, fá-lo com intuito de lucro, habitualidade e em nome próprio, mas não é empresário, porque em seu mister não contrata empregado, não organiza mão-de-obra. O feirante que desenvolve seu negócio valendo-se apenas das forças de seu próprio trabalho e de familiares (esposa, filhos, irmãos) e alguns poucos empregados, também não é empresário porque não organiza uma unidade impessoal de desenvolvimento de atividade econômica. O técnico em informática que instala programas e provê a manutenção de hardware atendendo aos clientes em seus próprios escritórios ou casa, o professor de inglês que traduz documentos para o português contratado por alguns alunos ou conhecidos deste, a massagista que atende a domicílio e milhares de outros prestadores de serviço - que, de telefone celular em punho, rodam a cidade - não podem ser considerados empresários, embora desenvolvam atividade econômica. Eles não são empresários porque não desenvolvem suas atividades empresarialmente, não o fazem mediante a organização dos fatores de produção.

Por fim, apenas para finalizar os elementos componentes do conceito de empresa extraível da definição legal de empresário, anote-se que produção de bens é a fabricação de produtos ou mercadorias em massa (toda grande indústria é, por definição, empresarial), produção de serviços é a prestação de serviços (banco, seguradora, hospital, escola, estacionamento, provedor de acesso à internet, etc); circulação de bens é a atividade de intermediação típica do comércio em sua manifestação originária (ir buscar o bem no produtor para trazê-lo ao consumidor); e circulação de serviços é a intermediação da prestação de serviços (a agência de turismo não presta os serviços de transporte aéreo, traslados e hospedagem, mas, ao montar um pacote de viagem, os intermedeia, pondo-os em circulação).

O conceito legal de empresário não recobre todas as atividades econômicas. Permanece, no interior da teoria da empresa, a classificação destas em empresariais ou não-empresariais. No item subseqüente, serão delimitados os contornos de cada uma delas.

4. Atividades econômicas empresariais e atividades econômicas não-empresariais

A adoção da teoria da empresa não implica a superação da bipartição do direito privado, que o legado jurídico de Napoleão tornou clássica nos países de tradição romana. Altera o critério de delimitação do objeto do Direito Comercial - que deixa de ser os atos de comércio e passa a ser a empresarialidade -, mas não suprime a dicotomia entre o regime jurídico civil e comercial.

A partir da teoria da empresa, o Direito Comercial (empresarial, de empresa, dos negócios - é indiferente a denominação que se lhe dê) deixa de ser o ramo jurídico aplicável à exploração de certas atividades (as listadas como atos de comércio) e passa a ser o direito aplicável quando a atividade é explorada de uma determinada forma (qual seja, a forma empresarial) (29 ).

Assim, de acordo com o Código Civil de 2002, continuam excluídas da disciplina do direito comercial algumas atividades econômicas. São as atividades não-empresariais, cujos exercentes não são empresário e não podem, por exemplo, impetrar concordata, nem falir. São quatro as hipóteses de atividades econômicas não-empresariais que o direito positivo brasileiro contempla.

A primeira atividade econômica não-empresarial a considerar é a explorada por quem não se enquadra no conceito legal de empresário. Se alguém presta serviços diretamente, mas não organiza uma empresa, mesmo que o faça profissionalmente (com intuito lucrativo e habitualidade), ele não é empresário e o seu regime não será o de Direito Comercial. Aliás, com o desenvolvimento dos meios de transmissão eletrônica de dados, estão surgindo atividades econômicas de relevo exploradas sem empresa, em que o prestador dos serviços trabalha sozinho em casa.

As demais atividades econômicas não-empresariais que existem no direito brasileiro são as dos profissionais intelectuais, dos empresários rurais não registrados na Junta Comercial e as das cooperativas.

Quanto aos exercentes de profissão intelectual, importa destacar que eles não se consideram empresários por força do parágrafo único do art. 966 do Código Civil:

Parágrafo único. Não se considera empresário quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa.

Vale a pena atentar, desde logo, para a locução "ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores". Por que teria o legislador se preocupado em fazer tal esclarecimento? A resposta é simples: a caracterização da empresa como atividade econômica organizada pressupõe, como assinalado, a articulação dos fatores de produção, entre os quais, a mão-de-obra. Quis o legislador deixar bem claro, no parágrafo único do art. 966, que os profissionais intelectuais não são empresários mesmo que organizassem o trabalho de empregados, porque seria apenas neste caso que a possibilidade de confusão existiria. O profissional intelectual que não conta com o concurso de auxiliares ou colaboradores nunca poderia ser considerado empresário porque não se enquadraria no conceito legal estabelecido pelo caput do mesmo dispositivo. Uma vez mais, confirma-se que a lei não quer atribuir a qualidade jurídica de empresário a quem não articula os fatores de produção.

Os profissionais intelectuais exploram, portanto, atividades econômicas não sujeitas ao Direito Comercial. Entre eles se encontram os profissionais liberais (advogado, médico, dentista, arquiteto etc.), cujo serviço é intrinsecamente ligado à própria pessoa do prestador e independe da estrutura organizada para dar-lhe suporte. Para Jorge Manuel Coutinho de Abreu, parece ser:

mais ajustado sustentar que, em regra, os escritórios, consultórios, estúdios dos profissionais liberais não constituem empresas. O que aí avulta é a pessoa dos profissionais (com específica capacidade técnico-científica para a prestação de serviços), não um objectivo complexo produtivo; o conjunto dos instrumentos de trabalho não têm autonomia funcional nem identidade própria, não mantém idêntica 'eficiência' ou 'produtividade' na titularidade de terceiro (profissional da mesma especialidade); a actividade do sujeito exaure praticamente o processo produtivo (de prestação de serviços). (30 )

Também se consideram exercentes de profissão intelectual os escritores e artistas de qualquer expressão (plásticos, músicos, atores etc.) bem assim os técnicos com alguma formação profissional específica (técnicos em contabilidade, em eletrônica, em informática, corretor de seguros, de imóveis, etc.).

Há uma exceção, prevista no mesmo dispositivo legal (parágrafo único do art. 966), em que o profissional intelectual se enquadra no conceito de empresário. Trata-se da hipótese em que o exercício da profissão constitui elemento de empresa, ou seja, sempre que o exercente de profissão intelectual dedicar-se mais à atividade típica de empresário (organização dos fatores de produção) do que propriamente à função científica, literária ou artística (31 ).

Atividade econômica rural, por sua vez, é a explorada normalmente fora da cidade. Certas atividades produtivas não são costumeiramente desenvolvidas em meio urbano, por razões de diversas ordens (materiais, culturais, econômicas ou jurídicas). São rurais, por exemplo, as atividades econômicas de plantação de vegetais destinadas a alimentos, fonte energética ou matéria-prima (agricultura, reflorestamento), a criação de animais para abate, reprodução, competição ou lazer (pecuária, suinocultura, granja, eqüinocultura) e o extrativismo vegetal (corte de árvores), animal (caça e pesca) e mineral (mineradoras, garimpo).

As atividades rurais, no Brasil, são exploradas em dois tipos radicalmente diferentes de organizações econômicas. Tomando-se a produção de alimentos por exemplo, encontra-se na economia brasileira, de um lado, a agroindústria (ou agronegócio) e, de outro, a agricultura familiar. Naquela, emprega-se tecnologia avançada, mão-de-obra assalariada (sempre numerosa, por vezes permanente ou temporária), especialização de culturas, grandes áreas de cultivo; na familiar, trabalham o dono da terra e seus parentes, um ou outro empregado, e são relativamente menores as áreas de cultivo (32 ).

Atento a esta realidade, o Código Civil de 2002 reservou para o exercente de atividade rural um tratamento específico. Dispõe o art. 971:

Art. 971. O empresário, cuja atividade rural constitua sua principal profissão, pode, observadas as formalidades de que tratam o art. 968 e seus parágrafos, requerer inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis da respectiva sede, caso em que, depois de inscrito, ficará equiparado, para todos os efeitos, ao empresário sujeito a registro.

Deste modo, se o exercente de atividade econômica rural requerer a inscrição no registro das empresas (Junta Comercial), será considerado empresário e submeter-se-á às normas de Direito Comercial. Esta é, normalmente, a opção adotada pelo agronegócio. Caso, porém, o exercente de atividade econômica rural não requeira a inscrição neste registro, não se considera empresário e seu regime será o do Direito Civil. Esta última deverá ser a opção predominante entre os titulares de negócios rurais familiares. Neste caso, se os exercentes de atividade rural se unirem numa sociedade, ela terá a natureza de simples.

Finalmente, em relação às cooperativas, convém registrar que, desde o tempo em que a delimitação do objeto do Direito Comercial era feita pela teoria dos atos de comércio, sempre houve duas exceções a assinalar no contexto do critério identificador desse ramo jurídico. De um lado, a sociedade por ações, que sempre se reputou comercial, independentemente da atividade explorada. De outro, as cooperativas, que são necessariamente sociedades exercentes de atividades civis (integram a categoria das "sociedades simples"), independentemente da atividade que exploram. A este respeito preceitua o art. 982 e seu parágrafo único do Código Civil:

Art. 982. Salvo as exceções expressas, considera-se empresária a sociedade que tem por objeto o exercício de atividade própria de empresário sujeito a registro (art. 967); e, simples, as demais.

Parágrafo único. Independentemente de seu objeto, considera-se empresária a sociedade por ações; e, simples, as cooperativas.

As cooperativas, normalmente, dedicam-se às mesmas atividades dos empresários e costumam atender aos requisitos legais de caracterização destes (profissionalismo, atividade econômica organizada e produção ou circulação de bens ou serviços), mas, por expressa disposição do legislador, que data de 1971, não se submetem ao regime jurídico-empresarial. Quer dizer, não estão sujeitas à falência e não podem impetrar concordata. Ela é, sempre, uma sociedade simples e nunca, empresária.

Cabe, agora, para encerrar as considerações gerais deste Parecer, distinguir uma de outra daquelas categorias de sociedade. No próximo item, em suma, tratarei das sociedades simples e das empresárias.

5. Sociedades empresárias e sociedades simples

A sociedade simples é uma das mais significativas novidades do Código Reale (33 ). Cuida-se de figura de larga importância porque cumpre três diferentes funções.

Em primeiro lugar, a sociedade simples é um dos vários tipos societários que a lei põe à disposição dos que pretendem explorar atividade econômica conjuntamente. Presta-se bem, por sua simplicidade e agilidade (34 ), às atividades de menor envergadura. É o tipo societário adequado, por exemplo, aos pequenos negócios, comércios ou prestadores de serviços não-empresários (isto é, que não exploram suas atividades empresarialmente), aos profissionais liberais (à exceção dos advogados, cuja sociedade tem disciplina própria na Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994), aos artesãos, artistas etc.

A segunda função que o Código Reale reservou para a sociedade simples foi a de servir de modelo genérico para os demais tipos societários contratuais. A disciplina da sociedade simples, que se encontra nos arts. 997 a 1.044 (Capítulo I do Subtítulo II do Título II do Livro II da Parte Especial), aplica-se também, em caráter subsidiário, à sociedade em nome coletivo (art. 1.040), em comandita simples (arts. 1.040 e 1.046) e, em regra, à sociedade limitada (art. 1.053, caput). É também a disciplina supletiva das sociedades cooperativas (art. 1.096).

Mas, é a terceira função da sociedade simples que interessa a este Parecer. Além de tipo societário e de modelo geral, ela é, finalmente, uma categoria de sociedades. Pelo art. 982 do Código Civil, transcrito acima, as sociedades se consideram simples se não tiverem "por objeto o exercício de atividade própria de empresário sujeito a registro". As sociedades desta categoria podem adotar, como autoriza o art. 983 do Código Civil, qualquer um dos tipos das sociedades empresárias (exceto os de sociedades por ações: anônima e comandita por ações) e, se não o fizer, subordinar-se-á às regras que lhe são próprias.

Então, a expressão "sociedade simples" é, em decorrência da primeira e última funções assinaladas, ambígua. Em sentido estrito designa um tipo de sociedade (ombreia-se, neste caso, à limitada, anônima, comandita por ações etc.); em sentido lato, designa a categoria das sociedades não-empresárias.

Quer dizer, de acordo com o sistema adotado pelo Código Reale, as sociedades personificadas se classificam, inicialmente, em empresárias e simples (não-empresárias). As empresárias podem adotar um de 5 tipos: nome coletivo, comandita simples, limitada, anônima e comandita por ações. As simples (em sentido lato), por sua vez, também podem adotar um de 5 tipos (em parte, diferentes): nome coletivo, comandita simples, limitada, cooperativa e simples (em sentido estrito).

Enquanto designação de categoria de sociedades, as sociedades simples são definidas legalmente por exclusão. São aquelas que não têm por objeto o exercício de atividade própria de empresário sujeito a registro. Será, portanto, a partir dos contornos da definição de empresário que se delimitarão, por exclusão, as sociedades em regra enquadradas nesta categoria (35 ).

Como examinado anteriormente, a atividade típica de empresário não se define por sua natureza, mas pela forma com que é explorada. Quando a atividade econômica é explorada de forma organizada (ou seja, mediante a articulação dos fatores de produção), então tem-se uma empresa; quem a exerce é empresário; e, se pessoa jurídica, uma sociedade empresária.

Tome-se por exemplo o comércio de algum bem qualquer: peixe. Tanto o supermercado como o feirante adquirem peixe para o revender ao consumidor. A atividade econômica tem, nos dois casos, a mesma natureza. O supermercado, porém, será, via de regra, uma empresa, porque se trata de comerciante que não consegue operar a não ser através da organização de trabalho alheio em estabelecimento adequado, de porte, com o emprego de controles e tecnologias apuradas. O feirante, por sua vez, pode explorar a mesma atividade sem dotar necessariamente desta organização. É claro que se for um feirante bem sucedido, titular de concessão em feira de grande movimento localizada em bairro de alto poder aquisitivo, é possível que seu movimento justifique organizar uma empresa. Não se verificando tais pressupostos, entretanto, aquela atividade comercial poderá ser adequada e inteiramente explorada sem a organização dos fatores de produção; ou seja, com o trabalho pessoal e da família, sem sofisticados controles operacionais, de estoque e de caixa, sem estabelecimento complexo.

Não é, deste modo, a natureza da atividade que define o empresário, mas, em regra, a forma pela qual é explorada.

Quando não houver exploração empresarial de certa atividade - isto é, quando a atividade econômica não for organizada - e o exercente for uma sociedade, não se encontram os pressupostos que o art. 982 do Código Civil estabeleceu para lhe atribuir a classificação de sociedade empresária. Se não há empresa, a sociedade que se dedica à atividade econômica em questão, pertence à categoria das simples (sentido lato).

Apenas dois tipos societários não se submetem à regra assinalada: de um lado, as sociedades por ações, que serão sempre empresárias, ainda que não explorem seu objeto empresarialmente; de outro, as cooperativas, que serão sempre simples, ainda que organizem de forma empresarial seu negócio.

As sociedades simples são registradas no Registro Civil das Pessoas Jurídicas, e não no Registro de Empresas (Juntas Comerciais), segundo o preceituado no art. 1.150 do Código Civil:

Art. 1.150. O empresário e a sociedade empresária vinculam-se ao Registro Público de Empresas Mercantis a cargo das Juntas Comerciais, e a sociedade simples ao Registro Civil das Pessoas Jurídicas, o qual deverá obedecer às normas fixadas para aquele registro, se a sociedade simples adotar um dos tipos de sociedade empresária.

Esta disposição aplica-se a qualquer um dos tipos da sociedade simples, em especial ao tipo que é necessariamente simples, a cooperativa.

Em relação ao registro apropriado para as sociedades cooperativas, dúvidas poderiam surgir em razão de dois preceitos: o art. 1.093 do Código Civil, que "ressalvou a legislação especial" e o art. 18 da Lei nº 5.764/71, que menciona a intervenção da Junta Comercial no processo de autorização de funcionamento das cooperativas. Com efeito, uma leitura superficial destes dois dispositivos poderia levar o intérprete menos atento à conclusão de que as cooperativas, apesar de sua classificação como sociedades simples, deveria ser registrada na Junta Comercial, contrariamente ao que dispõe o art. 1.150 do Código Civil.

Não se pode, porém, esquecer que o citado dispositivo da lei das cooperativas não vigora mais desde a promulgação da Constituição Federal de 1988. Entre os direitos e garantias fundamentais (art. 5º), o constituinte assegura que:

XVIII - a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento.

Em razão deste preceito constitucional, os arts. 17 a 20 da Lei nº 5.764/71 não foram recepcionados pela ordem inaugurada em 1988. Como o constituinte estabeleceu que a criação de cooperativas independe de autorização e vedou a interferência do estado em seu funcionamento, as normas de lei ordinária pré-dispostas a operacionalizarem a autorização e controle do funcionamento das cooperativas simplesmente perderam sua validade. Não foram, em suma, recepcionadas pela Constituição Federal.

Modesto Carvalhosa, em recentíssima obra de comentários ao novo Código Civil, ensina acerca da trajetória evolutiva da disciplina legal sobre cooperativismo no Brasil:

Com o advento da atual Lei de Cooperativas (Lei n. 5.764, de 16-12-1971) iniciou-se um período de renovação, tendente à mitigação da intervenção estatal no setor. Diz-se 'mitigação' da presença estatal, pois, em diversos pontos da lei, percebe-se que a intenção foi a de flexibilizar gradativamente as estruturas do cooperativismo, e não a de romper em definitivo com o controle estatal. Nesse sentido, merece destaque negativo a persistência da autorização prévia de funcionamento, antecedida por um procedimento lento e demasiadamente complexo, que continuava a obstar a constituição de novas cooperativas. Esse período de renovação gradativa desaguou na atual fase de liberalização das cooperativas, iniciada com a Constituição Federal de 1988, que, em seus arts. 5º, XVIII, e 174, §§ 2º, 3º e 4º, claramente estimula o desenvolvimento de um cooperativismo independente, isentando-as, por conseguinte, da autorização prévia e do controle estatal, uniformizando seu tratamento tributário e dispondo de forma mais específica sobre certas espécies de cooperativa, tais como aquelas voltadas às atividades de garimpo. Com isso, alguns dos dispositivos da ainda vigente Lei n. 5.764/71 claramente não foram recepcionados pela Constituição Federal, tais como os arts. 17 a 20, por exemplo, que dispõem sobre a referida autorização prévia de funcionamento. (36 )

Em 1988, verificou-se a não-recepção pela Constituição Federal do art. 18 da Lei nº 5.764/71. Em princípio, teria sido eliminada, naquela oportunidade, a anacrônica sistemática, desprovida de sentido, de uma sociedade civil ser registrada na Junta Comercial. Sucessivas normas do registro comercial, contudo, mantiveram a previsão (por exemplo, o art. 32, II, a, da Lei nº 8.934/94). Com novo Código Civil, entram em vigor dispositivos de lei expressos e claros, que qualificam as cooperativas como sociedades simples e indicam-lhe o Registro Civil das Pessoas Jurídicas para o registro de seus atos constitutivos e societários. As normas do registro comercial incompatíveis com o novo Código Civil não são específicas da cooperativa e, por isto, não se encontram ressalvadas pelo art. 1.093.

Assim, não sobram dúvidas de que as sociedades simples, qualquer que seja o tipo adotado (limitada, cooperativa, simples, etc.), são sempre registradas no Registro Civil das Pessoas Jurídicas, e não na Junta Comercial.

6. Respostas aos quesitos

1. Com a entrada em vigor do novo Código Civil, desapareceram as sociedades civis e comerciais e, conseqüentemente, a necessidade de distingui-las através do objeto social (civil ou comercial)?

O novo Código Civil introduziu, no direito positivo brasileiro, a teoria da empresa. Como referido ao longo do Parecer, diferentemente da teoria dos atos de comércio, a teoria da empresa não lista um conjunto de atividades econômicas para qualificá-las e submetê-las ao direito comercial. Na verdade, a teoria da empresa qualifica a atividade econômica em função da forma como é explorada.

Desde a entrada em vigor do novo Código Civil, portanto, as atividades econômicas são classificadas em empresariais ou não-empresariais.

Empresariais são as atividades econômicas organizadas como empresas. Sempre que ao produzir ou circular bens ou serviços, alguém combina os quatro fatores de produção do capitalismo superior (mão-de-obra, insumos, tecnologia e capital), confere à sua atividade uma organização específica. O nome desta organização é empresa.

Não-empresariais, por sua vez, são as atividades econômicas exploradas independentemente da articulação dos fatores de produção. Quando quem produz ou circula bens ou serviços não contrata senão alguns poucos empregados, não adquire nem desenvolve sofisticadas tecnologias, não faz circular insumos ou não tem relevante capital, falta-lhe empresarialidade.

Em vista disto, pode-se afirmar que o direito brasileiro não mais distingue sociedades comerciais de civis pelo seu objeto, mas sim distingue sociedades empresárias e simples pela forma com que exploram a atividade econômica.

2. A distinção entre as sociedades simples e empresária se dá tão somente pela forma com que se exerce a atividade econômica?

O art. 982 do Código Civil considera "empresária a sociedade que tem por objeto o exercício de atividade própria de empresário sujeito a registro".

Como visto ao longo do Parecer, é a organização empresarial da atividade econômica que define a atividade própria do empresário, e não a natureza desta atividade.

Uma mesma atividade econômica pode ser explorada empresarialmente ou não-empresarialmente. Esta é uma noção que não se aplica a apenas alguns poucos ramos da economia. Um banco só se explora empresarialmente; assim também uma seguradora ou operadora de plano privado de assistência à saúde, além de exercentes de outras atividades cuja complexidade exige uma empresa. Na maioria dos casos, contudo, tanto o comércio como a prestação de serviços podem ser explorados empresarialmente ou não.

Quando se está diante desta hipótese - atividades econômicas que podem ou não ser exploradas de forma empresarial - se os exercentes se unem numa sociedade, ela poderá ser empresária ou simples.

Será empresária se o objeto for explorado com a organização típica da empresa; será simples, se for explorado sem tal organização.

A distinção entre sociedade simples e empresária dá-se, portanto, exclusivamente em função da forma com que se exerce a atividade econômica. É esta a regra. Estabelece a lei que, independentemente da forma do exercício da atividade econômica, os dedicados às atividades intelectuais, de artesanato ou artísticas, bem como as cooperativas sempre se consideram sociedades simples.

3. As sociedades simples são apenas aquelas cuja atividade venha a corresponder ao exercício de profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, com fundamento no parágrafo único do art. 966 do Código Civil?

Não. Os exercentes de profissão intelectual de natureza científica, literária ou artística, quando unidos em sociedade que não adote a forma por ações, contratam necessariamente uma sociedade simples. Isto porque a lei ressalvou expressamente, no dispositivo citado no quesito, a hipótese. Eles exercem, assim, atividades não-empresariais.

De se anotar que não precisa ser uniprofissional a sociedade de exercentes de profissão intelectual para caracterizar-se como simples. Se um arquiteto e um engenheiro se unem em sociedade para prestar os serviços que são comuns às duas atividades intelectuais, simples será a sociedade.

Mas não se esgotam nesta hipótese os casos de sociedades simples.

Qualquer exercente de atividade econômica que não a organiza empresarialmente, sendo pessoa jurídica, será uma sociedade simples.

Deste modo, as sociedades simples não são apenas aquelas cujo objeto se encontra referido no parágrafo único do art. 966 do Código Civil.

4. As sociedades simples, já que se destinam ao exercício de atividade econômica (com bens e serviços), podem ter por objeto a prestação de serviços em geral e o pequeno comércio, pequena indústria e artesãos, de um modo geral?

As sociedades simples podem ter por objeto prestação de serviços, artesanato e comércio.

Como visto, não é a natureza da atividade econômica que define se a sociedade que a explora deve ser simples ou empresária, mas sim a forma como a atividade é explorada.

Desde que no ato constitutivo ou em instrumento apartado, o interessado declare que a sociedade é simples (porque não explora a atividade econômica pertinente ao seu objeto de forma empresarial), é esta sua classificação jurídica.

Não tem importância, note-se, a dimensão do negócio. Normalmente, não se consegue explorar atividade econômica de vulto sem a organização empresarial. Mas não há relação necessária entre um e outro vetor. Tanto assim que pequenos negócios podem ser explorados empresarialmente. O decisivo é a forma com que se explora a atividade: com ou sem empresarialidade.

5. Há alguma vedação que impeça as sociedades simples de exercer essas atividades de bens e serviços referidas no quesito anterior?

Não há vedação nenhuma que impeça a sociedade simples de ter por objeto atividade econômica de prestação de serviços, artesanato ou comércio.

Para ser classificada como simples, basta que a sociedade não explore seu objeto empresarialmente. Se assim o fizer, e não se constituir regularmente como sociedade empresária, estará exposta às conseqüências da irregularidade, como, por exemplo, a perda da personalidade jurídica. É a mesma conseqüência que se manifesta, aliás, se a sociedade simples (de tipo limitada, por exemplo) levar a registro seus atos constitutivos na Junta Comercial.

Esta, porém, é uma outra questão. Enquanto a sociedade simples explora seu objeto de forma não-empresarial, ela será regular, exatamente por inexistir qualquer vedação que a impeça de ter, como objeto, o artesanato, comércio e prestação de serviços.

Há somente algumas poucas atividades que a sociedade simples não pode ter por objeto. São, em geral, as atividades para cuja exploração à lei exige a forma de sociedade anônima. É o caso de bancos e seguradoras, que apenas se podem constituir por sociedades empresárias.

6. Seria imprescindível que do ato constitutivo da sociedade constasse referência expressa à natureza simples ou empresária da sociedade?

Não exige a lei que conste do ato constitutivo da sociedade uma referência expressa à sua natureza simples ou empresária.

Na verdade, a exata classificação de qualquer sociedade personificada é uma questão de fato.

Se a sociedade explora empresarialmente a atividade própria de seu objeto, mas não se organiza como sociedade empresária, ela está em situação irregular e sofrerá as conseqüências disto (perda da personalidade jurídica, impossibilidade de impetrar concordata, etc.). Estará, em outros termos, na mesma condição em que se encontraria uma sociedade simples que inadvertidamente se registrasse na Junta Comercial.

Uma referência, no instrumento constitutivo, da classificação da sociedade como simples não teria valor apenas se ela, de fato, for empresária. Não havendo, contudo, discrepância entre o declarado no ato societário levado a registro e a realidade de fato da sociedade, a declaração terá plena validade e eficácia.

Mas a declaração do interessado (no ato constitutivo ou em instrumento apartado) no sentido de ser simples a sociedade levada a registro representa cautela altamente recomendável para os consulentes admitirem registrarem o contrato de uma sociedade simples (seja ela do tipo limitada ou do tipo simples).

7. Para efeito de admissão no órgão de registro competente (os Registros Civis das Pessoas Jurídicas e os Registros de Empresas), qual o critério a ser adotado para classificar a natureza jurídica de uma sociedade e a conseqüente competência registral?

A exata classificação de uma sociedade personificada (simples ou empresária) é, como acentuado na resposta ao quesito anterior, uma questão de fato. Quer dizer, se a atividade econômica correspondente ao objeto social está sendo explorada com a organização típica dos empresários, a sociedade é empresária; caso contrário, é simples.

O Registro Civil das Pessoas Jurídicas, evidentemente, não é responsável pela certificação deste fato. Se a sociedade simples efetivamente explora seu objeto social organizada como empresa ou não é circunstância que o registro não afirma, nem nega.

Deste modo, cabe ao interessado na constituição de uma sociedade simples fazer, perante o órgão de registro, a declaração correspondente a este tipo societário. A vista desta declaração, o registro pode ser feito, a menos que outras circunstâncias (valor do capital social, elevada quantidade de sócios etc.) recomendem encaminhar o interessado à Junta Comercial.

8. É correto afirmar que as sociedades cooperativas serão registradas no Registro Civil das Pessoas Jurídicas?

Como mencionado no item 4 deste Parecer, o registro das cooperativas nas Juntas Comerciais, na data da entrada em vigor do Código Civil, estava previsto no art. 18 da Lei nº 5.764/71 (lei do cooperativismo) e no art. 32, II, a, da Lei nº 8.934/94 (lei do registro de empresas).

O Código Civil contempla dispositivo que ressalva a vigência da legislação especial das cooperativas (art. 1.093, in fine).

Esta ressalva, porém, não alcançou nem o art. 18 da lei do cooperativismo, nem o art. 32, II, a, da lei do registro de empresas.

O art. 18 da lei do cooperativismo, embora abrigado em legislação especial das cooperativas, não tem mais vigência desde 1988, porque não foi recepcionado pela Constituição Federal. O Texto Fundamental, no art. 5º, XVIII, veda a lei exigir da cooperativa a autorização prévia do estado para funcionar. O dispositivo em foco trata, na verdade, dos procedimentos de autorização e menciona a participação da Junta Comercial nestes procedimentos. Sendo, com a ordem fundamental inaugurada em 1988, inconstitucional qualquer previsão de autorização governamental para o funcionamento da cooperativa, deixaram de ser recebidos os preceitos abrigados nos arts. 17 a 20 da lei do cooperativismo.

O Código Civil não poderia ressalvar a vigência de norma inconstitucional, ou melhor, de norma não recepcionada pela Constituição de 1988.

Já o art. 32, II, a, da lei do registro de empresas não é, obviamente, norma específica das cooperativas. E por esta razão não se encontra ao abrigo da ressalva do art. 1.093 do Código Civil.

As Juntas Comerciais apenas continuariam a ser o órgão competente para o registro das cooperativas se o Código Civil não trouxesse, claramente, a classificação destas sociedades no conjunto das simples e a vinculação deste ao Registro Civil das Pessoas Jurídicas. O art. 32, II, a, da lei do registro de empresas (assim como todas as normas esparsas não específicas das cooperativas) está revogado pela nova sistemática introduzida pelo Código Civil.

As sociedades cooperativas, portanto, devem ser registradas no Registro Civil das Pessoas Jurídicas, e não nas Juntas Comerciais.

9. A autoridade de registro está obrigada a fiscalizar a observância das prescrições legais concernentes ao ato? Quais as conseqüências jurídicas do registro de uma sociedade em registro incompetente, para a sociedade e para o órgão de registro, respectivamente? Os atos registrados em registro incompetente são nulos, anuláveis ou inexistentes?

O Registro Civil das Pessoas Jurídicas ou a Junta Comercial têm o dever de não aceitar para registro atos constitutivos de sociedades que não se refiram à respectiva competência.

Se, por exemplo, o Registro Civil das Pessoas Jurídicas registrar uma sociedade anônima ou se a Junta Comercial registrar uma sociedade cooperativa, elas estão descumprindo o dever prescrito no dispositivo legal lembrado pelo quesito e terão, evidentemente, responsabilidade por terem extrapolado os limites legais de suas competências.

As conseqüências jurídicas do registro de uma sociedade por órgão incompetente, para a sociedade, são as da irregularidade. Uma sociedade registrada em órgão incompetente encontra-se na mesma situação de uma sociedade sem registro.

A sociedade que funciona sem o registro exigido em lei tem sua disciplina, hoje, centrada na figura da "sociedade em comum".

Deste modo, uma sociedade empresária registrada no Registro Civil das Pessoas Jurídicas deve ser tratada como uma sociedade irregular. Concretamente falando, ela não tem personalidade jurídica própria distinta da de seus sócios e estes respondem ilimitadamente pelas obrigações sociais (CC, art. 990). Outras conseqüências: elas não podem impetrar concordata (LF, art. 140) e, se tiverem sua falência decretada, ela será reputada ilícita (LF, art. 186, VI). Além do mais, ela não poderá usar em juízo seus livros e fichas contábeis para fazer prova em seu favor, porque faltará um dos requisitos extrínsecos que é a autenticação pelo órgão competente (CC, art. 226).

Em relação ao órgão de registro que extravasou sua competência, as conseqüências serão de ordem civil e administrativa. No plano civil, o órgão pode ser responsabilizado por eventuais danos que venham a ser suportados pelos particulares, provada, evidentemente, sua culpa ou dolo no evento. No plano administrativo, caberão as sanções correcionais próprias.

Convém assinalar, porém, que os atos societários registrados em registro incompetente não são nulos, nem anuláveis, nem inexistentes. Possuem inegavelmente um vício, mas este não é de monta a lhes retirar a validade. O ato continuará válido, a despeito da incompetência do registro. Continuará, outrossim, existente.

Para que a incompetência do registro implicasse a nulidade ou anulabilidade do ato seria necessário que a lei tivesse condicionado sua validade ao registro. Não é este o caso. Uma sociedade sem contrato social registrado no órgão competente não é inválida (é "em comum").

Por outro lado, para que a ausência do registro no órgão competente subtraísse a existência do ato seria necessário que a lei a condicionasse à formalidade. E também não é este o caso. Uma sociedade sem contrato social registrado no órgão competente existe (é disciplinada, em lei, pelas regras da "sociedade em comum").

O ato societário objeto de registro por órgão incompetente é, sem dúvida, viciado, irregular. Mas por não condicionar o direito brasileiro nem a existência nem a validade do ato societário ao registro no órgão competente, segue-se que o vício compromete apenas a eficácia do registro.

Uma sociedade empresária registrada no Registro Civil das Pessoas Jurídicas ou uma sociedade simples registrada na Junta Comercial estão, como afirmado, na mesma situação de uma sociedade sem registro; são, no linguajar do novo Código Civil, uma sociedade em comum. Os seus atos constitutivos, por não terem sido levados a registro no órgão competente, não produziram os efeitos que deles se esperava, isto é, os de gerar uma sociedade regular; apenas isto.

São Paulo, 6 de agosto de 2003.

Fábio Ulhoa Coelho:

Advogado especialista em Direito Empresarial em São Paulo e Professor titular de Direito Comercial da PUC-SP, Mestre, Doutor, Livre Docente em Direito, autor de diversas obras jurídicas, membro da Société de Législation Comparée, de Paris, do Instituto de Direito Comercial Comparado e Biblioteca Túlio Ascarelli, da USP".

Notas:

1 O que o negócio jurídico tem de específico em relação ao ato jurídico é a intencionalidade do sujeito. O negócio jurídico é o ato jurídico em que o sujeito quer produzir a conseqüência prevista na norma. Em outros termos, o ato jurídico é sempre voluntário, isto é, algo que o sujeito de direito faz por sua vontade. Produz, ademais, sempre efeitos previstos em lei, já que a ação voluntária irrelevante para o direito (espreguiçar-se antes de levantar da cama, por exemplo) não se a considera sequer fato jurídico. Pois bem, se o efeito pré-disposto na norma jurídica é querido pelo sujeito, denomina-se negócio jurídico o ato. Neste caso, o resultado jurídico previsto na norma só se operou porque o sujeito de direito o quis, enquanto que nos atos não negociais, os efeitos são simples conseqüências que a norma jurídica liga a determinados fatos, independentemente da intenção dos sujeitos envolvidos. As diferenças entre a teoria francesa dos atos jurídicos e a alemã dos negócios jurídicos são tão sutis que escaparam a Clóvis Bevilacqua. Após noticiar que a sistemática alemã distinguia atos jurídicos de declarações de vontade, deu por encerrado o assunto, anotando que "geralmente as duas expressões se consideram equipolentes". Aproveitou-se, então, de lições sobre negócio jurídico para discorrer sobre atos jurídicos (Teoria Geral do Direito. Rio de Janeiro, Editora Rio, 1980, 2ª edição, pág. 213). A sutileza das diferenças possibilitou, também, a alguns doutrinadores brasileiros, como Caio Mário da Silva Pereira, entre outros, sustentarem que a proximidade entre o nosso conceito legal de ato jurídico (o do Código de 1916) e as lições da doutrina alemã sobre negócio jurídico era tão expressiva, que cabia dar-se preferência a esta no desenvolver das lições de direito civil (Instituições de Direito Civil. Rio de Janeiro, Forense, 1976, vol. 1, 5ª edição, pág. 414).  

2 Conferir nos manuais mais utilizados pelas faculdades francesas: Jean Carbonnier, Droit Civil - introduction, Paris, PUF, 1999, 26ª edição; Christian Larroumet, Droit Civil, Paris, Economica, 1998, 3ª edição; Michel Juglart et al, Cours de Droit Civil - manuel, Paris, Montchrestien, 1999, vol. 1, 15ª edição; Pierre Voirin e Gilles Goubeaux, Droit Civil, Paris, LGDJ, sem ano, 20ª edição.

3 Deve-se destacar que também a ideologia fascista contribuiu para o surgimento de uma teoria como a da empresa. Como proponho em meu Manual de Direito Comercial, deve-se atentar "para o local e ano em que a teoria da empresa se expressou pela primeira vez no ordenamento positivo. O mundo estava em guerra e, na Itália, governava o ditador fascista Mussolini. A ideologia fascista não é tão sofisticada como a comunista, mas um pequeno paralelo entre ela e o marxismo ajuda a entender a ambientação política do surgimento da teoria da empresa. Para essas duas concepções ideológicas, burguesia e proletariado estão em luta; elas divergem sobre como a luta terminará. Para o marxismo, o proletariado tomará o poder do estado, expropriará das mãos da burguesia os bens de produção e porá fim às classes sociais (e, em seguida, ao próprio estado), reorganizando-se as relações de produção. Já para o fascismo, a luta de classes termina em harmonização patrocinada pelo estado nacional. Burguesia e proletariado superam seus antagonismos na medida em que se unem em torno dos superiores objetivos da nação, seguindo o líder (duce), que é intérprete e guardião destes objetivos. A empresa, no ideário fascista, representa justamente a organização em que se harmonizam as classes em conflito" (São Paulo, Saraiva, 2003, 14ª edição, págs. 8/9).

4 Waldírio Bulgarelli, Direito Comercial. São Paulo, Atlas, 1991, 8ª edição, pág. 59.

5 Trattato di diritto commerciale. Milão, Francesco Valardii, 1922, vol. 1, 5ª edição, págs. 1 a 25. Vivante, no entanto, não insistiu nessas críticas à autonomia do direito comercial; em 1919, após ser nomeado presidente da comissão de reforma da legislação comercial na Itália, abandonou a tese da unificação e elaborou um projeto de Código Comercial específico.

6 Noto que a uniformização legislativa do direito privado já existia em parte na Suíça, desde 1881, com a edição de código único sobre obrigações, mas será o texto italiano que servirá de referência doutrinária porque, embora posterior, é acompanhado por uma teoria substitutiva à dos atos de comércio. Com certeza, não basta a reunião da disciplina privada das atividades econômicas num mesmo diploma legal, para que se eliminem as diferenças de tratamento entre as comerciais e as civis. É necessária ainda uma noção teórica capaz de se constituir o modelo para esta disciplina, um sistema que se contraponha ao francês e o supere. Se a legislação suíça já não apresenta diferenças entre as atividades dos comerciantes e a dos não-comerciantes, sob o ponto de vista da disciplina das obrigações, não veio a inovação acompanhada de uma reflexão doutrinária mais abrangente, que projetasse seus efeitos no mundo jurídico de tradição românica.

7 Para Ascarelli, "à unificação do direito das obrigações corresponde, assim, a figura geral do empresário, não como fundamento de uma nova autonomia do direito mercantil (...), mas como característica geral de quem exerça uma atividade econômica (...)" (Corso de Diritto Commerciale - introduzione e teoria dell'impresa. Traduzido da versão espanhola publicada em Barcelona, 1964, pág. 127).

8 Sobre as imprecisões conceituais de empresa, ver Waldírio Bulgarelli, A Teoria Jurídica da Empresa. São Paulo, 1985, RT, págs. 113 e seguintes. Sobre o acento no aspecto da "atividade", este autor anota: "a falta de um especial relevo quanto [à atividade] é explicável pela quase inexistência então de estudos específicos da doutrina jurídica a seu respeito, o que só seria feito a seguir, até com certo pioneirismo, por Tullio Ascarelli" (pág. 124).

9 Confrontar com Giuseppe Fanelli, Introduzione alla teoria giuridica dell'impresa. Milão, Giuffrè, 1950, págs. 73/75.

10 Perfis da Empresa. Tradução de Fábio Konder Comparato publicada na Revista de Direito Mercantil vol. 104, outubro-dezembro de 1996, págs. 109/126.

11 Obra citada, págs. 109/110.

12 Obra citada, pág. 111.

13 Para Rubens Requião, "o conceito de empresa se firma na idéia de que é ela o exercício de atividade produtiva. E do exercício de uma atividade não se tem senão uma idéia abstrata" (Curso de Direito Comercial. São Paulo, Saraiva, 1991, vol. 1, 20ª edição, pág. 57).

14 Obra citada, pág. 116.

15 Obra citada, pág. 118.

16 Obra citada, pág. 122.

17 Questões de Direito Mercantil. São Paulo, Saraiva, 1977, págs. 7/8.

18 Jorge Manuel Coutinho de Abreu, professor da Faculdade de Direito de Coimbra, leciona em obra publicada em 1999: "penso ser legítima a utilização sinonímica dos dois vocábulos [empresa e estabelecimento] - e tomando em conta quer o espaço jurídico-mercantil quer outros domínios. Com efeito, as leis não se opõem a tal equipolência. É certo: 'empresa' denota preferencialmente o 'perfil subjectivo' do fenómeno e o 'institucional'; por sua vez, 'estabelecimento' anda tradicionalmente ligado ao 'perfil objectivo'. Não obstante, 'estabelecimento' pode também ligar-se, uma vez ou outra, àqueles dois perfis, tal como 'empresa' serve muito bem para significar ainda a dimensão objectiva do fenómeno - a empresa como instrumento ou estrutura produtiva de um sujeito, e objecto (...) de relações jurídicas" (Da Empresarialidade - as empresas no direito. Coimbra, Almedina, 1999, págs. 4/5.

19 Confrontar com Francisco Ferrara, la teoria giuridica dell'azienda. Firenze, Il Castellacio, 1945, págs. 90/91. Transcrevo a tradução de Rubens Requião, obra citada, págs. 53/54.

20 A Teoria .... obra citada, pág. 142.

21 Oscar Barreto Filho, com clareza, assinala: "ao conceito básico de empresário se ligam as noções, também fundamentais, de empresa e de estabelecimento. São três noções distintas, mas que na realidade se acham estreitamente correlacionadas. O empresário, como vimos, é um sujeito de direito, e a empresa é a atividade por ele organizada e desenvolvida, através do instrumento adequado que é o estabelecimento. A figura do empresário é determinada pela natureza da atividade por ele organizada e dirigida; sob este aspecto, a noção de empresário é, logicamente, um corolário da noção de empresa" (Teoria do Estabelecimento Comercial. São Paulo, Saraiva, 1988, 2ª edição, pág. 115).

22 "Somente se emprega de modo tecnicamente adequado o conceito de 'empresa' quando tiver o sentido de 'empreendimento'. Se alguém reputa 'muito arriscada a empresa', está certa a forma de se expressar: o empreendimento em questão enfrenta consideráveis riscos de insucesso, na avaliação desta pessoa. Como ela se está referindo à atividade, é adequado falar em 'empresa'. Outro exemplo: no princípio da preservação da empresa, construído pelo moderno Direito Comercial, o valor básico prestigiado é o da conservação da atividade (e não do empresário, do estabelecimento ou de uma sociedade), em virtude da imensa gama de interesses que transcendem os dos donos do negócio e gravitam em torno da continuidade deste; assim os interesses de empregados quanto aos seus postos de trabalho, de consumidores em relação aos bens ou serviços de que necessitam, do fisco voltado à arrecadação e outros" (meu Manual de Direito Comercial. São Paulo, Saraiva, 2003, 14ª edição, pág. 13).

23 Obra citada, pág. 58.

24 O lucro pode ser o objetivo da produção ou circulação de bens ou serviços (finalidade), ou apenas o instrumento para alcançar outros objetivos (meio). "Religiosos podem prestar serviços educacionais (numa escola ou universidade) sem visar especificamente o lucro. É evidente que, no capitalismo, nenhuma atividade econômica se mantém sem lucratividade e, por isso, o valor total das mensalidades deve superar o das despesas também nesses estabelecimentos. Mas a escola ou universidade religiosas podem ter objetivos não lucrativos, como a difusão de valores ou criação de postos de emprego para os seus sacerdotes. Neste caso, o lucro é meio e não fim da atividade econômica" (meu Manual .... obra citada, pág. 13).

25 Questões de Direito Mercantil. São Paulo, Saraiva, 1977, pág. 10. Os conceitos de empresário do Projeto de Código das Obrigações de 1965, do Projeto de Código Civil de 1975 e da lei em vigor são idênticos.

26 Teoria.... obra citada, pág. 149.

27 Obra citada, págs. 10/11.

28 Obra citada, pág. 57.

29 Waldemar Ferreira ensina que "a empresa constitui, atualmente, o verdadeiro critério da comercialidade. O Direito Comercial deve ser o das empresas. Essa idéia o unifica. Restitui-lhe seu caráter profissional, sem que se regresse ao direito de casta e de formalismo antigo. Ligam-se-lhes as noções de atos de comércio e de comerciante. O Comerciante é o chefe da empresa, indivíduo ou sociedade, conforme o caso. Quanto aos atos de comércio, eles se reputam mercantis pela teoria do acessório, salvo alguns, verdadeiramente objetivos" (Tratado de Direito Comercial. São Paulo, Saraiva, 1960, vol. 1, pág. 212).

30 Obra citada, pág. 102.

31 "Para compreender este conceito, convém partir de um exemplo. Imagine o médico pediatra recém-formado, atendendo seus primeiros clientes no consultório. Já contrata pelo menos uma secretária, mas se encontra na condição geral dos profissionais intelectuais: não é empresário, mesmo que conte com o auxílio de colaboradores. Nesta fase, os pais buscam seus serviços em razão, basicamente, de sua competência como médico. Imagine, porém, que, passando o tempo, este profissional amplie seu consultório, contratando, além de mais pessoal de apoio (secretária, atendente, copeira etc.), também enfermeiros e outros médicos. Não chama mais o local de atendimento de consultório, mas de clínica. Nesta fase de transição, os clientes ainda procuram aqueles serviços de medicina pediátrica, em razão da confiança que depositam no trabalho daquele médico, titular da clínica. Mas a clientela se amplia e já há, entre os pacientes, quem nunca foi atendido diretamente pelo titular, nem o conhece. Numa fase seguinte, cresce mais ainda aquela unidade de serviços. Não se chama mais clínica, e sim hospital pediátrico. Entre os muitos funcionários, além dos médicos, enfermeiros e atendentes, há contador, advogado, nutricionista, administrador hospitalar, seguranças, motoristas e outros. Ninguém mais procura os serviços ali oferecidos em razão do trabalho pessoal do médico que os organiza. Sua individualidade se perdeu na organização empresarial. Neste momento, aquele profissional intelectual tornou-se elemento de empresa. Mesmo que continue clinicando, sua maior contribuição para a prestação dos serviços naquele hospital pediátrico é a de organizador dos fatores de produção. Foge, então, da condição geral dos profissionais intelectuais e deve ser considerado, juridicamente, empresário" (meu Manual... obra citada, págs. 16/17).

32 Consultar, a respeito: Agricultura familiar - realidades e perspectivas (João Carlos Tedesco, organizador, Passo Fundo, UPF, 2001, 3ª edição), Gestão Agroindustrial (Mário Otávio Batalha, coordenador, São Paulo, Atlas, 2001, 2ª edição) e Economia e Gestão dos Negócios Agroalimentares (Décio Zylbersztajn e Marcos Fava Neves, organizadores, São Paulo, Pioneira, 2000).

33 Infelizmente, as normas do Código Civil italiano sobre società semplice não podem servir de subsídios ao estudo das sociedades simples do direito brasileiro. Lá, os empresários são classificados em comerciais e não-comerciais e as sociedades simples são as reservadas a estes últimos empresários. Não existe, portanto, no direito italiano, como claramente dispôs o legislador brasileiro, a contraposição entre sociedades simples e empresárias. Sobre a matéria, consultar Francisco Ferrara Jr., Gli Impreditori e le Società, Milão, 1994, Giuffrè, 9ª edição, especialmente os capítulos II e IX.

34 A simplicidade e agilidade das sociedades simples, em especial quando adotada o tipo societário simples, são características facilmente identificáveis. Em primeiro lugar, embora possam, por cláusula inserida no contrato social, limitar validamente a responsabilidade dos sócios pelas obrigações da sociedade (CC, art. 997, VIII), não estão obrigadas às formalidades societárias periódicas, previstas, por exemplo, para as sociedades limitadas. Tais formalidades, que exigem, por exemplo, a realização de assembléia ou reunião de sócios anual para simplesmente registrar a aprovação das contas, não precisam ser observadas pelas sociedades simples. Além disso, admitem a figura do sócio que integraliza sua participação societária com serviços (CC, art. 997, V), espécie de contribuição inadmissível nas sociedades limitadas (CC, art. 1.055, § 2º). Em terceiro lugar, não se submete à restrição que o art. 977 do CC estabeleceu para os sócios casados em regime de comunhão universal ou separação obrigatória. Aliás, é bastante provável que, em vista do significativo aumento da complexidade das sociedades limitadas, estas acabem sendo a opção de negócios de algum porte econômico, tendendo a sociedade simples a ser a escolha dos micro, pequenos e médios negócios.

35 Disse "em regra" porque as sociedades dedicadas a atividades intelectuais, por exemplo, são sempre enquadradas na categoria de sociedades simples (CC, art. 966, parágrafo único).

36 Comentários ao Código Civil. São Paulo, Saraiva, 2003, vol. 13, págs. 395/396.).

A matéria que deverá ser superada para o deslinde da quaestio é saber se o registro feito pela Serventia do Registro Civil das Pessoas Jurídicas da Comarca da Capital é valido ou não, ou seja, qual é o domicílio da empresa?

Mais uma vez fazendo pesquisa junto ao site http://conjur.estadao.com.br//static/text/52286,3 , tendo como tema o domicílio - vida privada - Domicílio: um complexo conceito do Direito Civil, por Gisele Leite, que é professora, mestre em direito, e conselheira do Instituto Brasileiro de Pesquisas Jurídica, nos seguintes termos:

"O direito romano já delineava de forma clara e precisa de domicílio. Era simplesmente o lugar onde a pessoa se estabelecia permanentemente.

Informa Pablo Stolze que foram os franceses que complicaram a noção de domicílio, pois imaginavam haver relação jurídica entre a pessoa e o lugar que habitava. Domicílio corresponde, em última análise, à projeção da proteção constitucional da própria pessoa humana. A disciplina jurídica do domicílio visa à preservação da vida privada da pessoa humana, garantindo a dignidade humana afirmada constitucionalmente.

Por imperativo da segurança jurídica, toda pessoa deve ter um lugar que seja considerado a sede central de seus negócios. Neste local, salvo disposição especial em contrário, a parte com quem contratamos poderá ser demandada, uma vez que o foro do domicílio do réu fixa a regra geral de competência territorial (artigo 94 do CPC).

A noção de domicílio pertence ao direito material onde é devidamente disciplinada e sistematizada, a Lei de Introdução ao Código Civil (LICC) adota o sistema de territorialidade moderada e dispõe em seu artigo 7º toda a relevância do conceito de domicílio e seus efeitos.

No direito das obrigações, serve o domicílio para firmar a regra geral de que o pagamento deve ser efetuado no domicílio do devedor (é a chamada dívida quesível ou querable), se o contrário não resultar do contrato, das circunstâncias ou da natureza da obrigação, bem como da própria lei.

Referente ao domicílio político ,este é relevante para o Direito Constitucional e ao Direito Eleitoral. Mesmo na seara processual penal, desconhecido o local onde se consumou o crime, a competência para julgar o réu poderá ser determinada por seu domicílio ou residência (artigo 72 do CPPC).

Domicílio civil é o lugar onde a pessoa natural estabelece residência com ânimo definitivo, convertendo-o, em regra, em centro principal de seus negócios jurídicos ou de sua atividade profissional.

É o local onde reside sozinho ou com seus familiares. É o lugar onde se fixa o centro de seus negócios jurídicos ou de suas ocupações habituais. O Código Civil Brasileiro de 2002 abarcou todas as hipóteses de domicílios nos artigos 70, 72 e em seu parágrafo único.

Morada é mera relação de fato sem o ânimo de nela permanecer, é lugar onde a pessoa natural se estabelece provisoriamente. Estadia descreve Ruggiero que pode ser definida como "a mais tênue relação de fato entre uma pessoa e um lugar tomada em consideração de lei", é de importância mínima, não produzindo em regra qualquer efeito, senão quando se ignora a existência de uma sede mais estável para a pessoa.

O mesmo doutrinador aponta que residência pressupõe maior estabilidade, mas é bem mais complexa a noção de domicílio posto que abrange a residência e, por conseguinte, a morada. Mas, há sobretudo, o animus manendi, ou seja, o ânimo definitivo de fixar-se.

Pondera Pablo Stolze que a fixação de domicílio tem natureza jurídica de ato jurídico não-negocial ou ato jurídico stricto sensu segundo a escola alemã. E, como tal, exige-se a capacidade de agir. Exceto para os chamados domicílios originários.

A pluralidade de domicílios é orientação advinda do direito alemão a qual seguimos. Inovou, outrossim, o legislador pátrio ao substituir a expressão "centro de ocupações habituais" por outra expressão mais abrangente "quanto às relações concernentes à profissão, o lugar onde esta é exercida".

A mudança de domicílio opera-se com a transferência da residência aliada à intenção manifesta de alterá-lo, que se constata da análise objetiva das circunstâncias fáticas.

Para as pessoas que não tenham residência certa ou domicílio, elaborou-se a tese ou teoria do domicílio aparente ou ocasional criada por Henri De Page segundo a qual aquele que cria as aparências de um domicílio em um lugar pode ser considerado por terceiro como tendo aí o seu domicílio.

Aplicação desta teoria assenta-se no teor do artigo 73 do CC onde se reputa o domicílio, o lugar onde a pessoa for encontrada (é o caso dos nômades, andarilhos, ciganos, profissionais ambulantes e etc.).

O vigente CPC, em seu parágrafo 2º, do artigo 94, utilizar-se tal teoria quando aduz que, sendo incerto ou desconhecido o domicílio do réu, este será demandado aonde for encontrado ou no foro do domicílio do autor.

Já o domicílio de pessoa jurídica de direito privado é normalmente indicado em seu estatuto ou contrato social, é o chamado domicílio especial. E se não houver tal indicação expressa, considerar-se-á como domicílio, o lugar onde funcionarem as respectivas diretorias e administrações, ou então, se possuir filiais em diversos lugares, "cada um deles será considerado domicílio para os atos nele praticados" (artigo 75, IV, parágrafo 1º do CC de 2002).

O domicílio voluntário é o mais comum e decorre de ato livre, da vontade do sujeito de direito. O domicílio legal ou necessário é fruto de determinação legal e em atenção à condição especial de certas pessoas. É o caso do incapaz, do servidor público, do militar, do marítimo e do preso (artigo 76 do CC).

Já quanto ao domicílio de eleição ou contratual, este é fruto de mútua vontade das partes contratantes, porém na seara do Direito do Consumidor é curial relatar que, nos contratos de consumo, considera-se ilegal e abusiva a cláusula contratual que fixar o foro de eleição em benefício do fornecedor do produto ou serviço, em prejuízo do consumidor (artigo 51, IV do CDC).

Adverte Amauri Mascaro Nascimento que também não é admitido nos contratos de trabalho em face da notória hipossuficiência do trabalhador (artigo 9 da CLT). E na maioria dos contratos de adesão também não tem prevalecido, quando importar em prejuízo ao contratante aderente.

A noção de domicílio tem enorme relevância para o direito, particularmente no âmbito processual. Legou-nos o direito romano noção bastante nítida do instituto, embora contenha uma referência incompleta.

A teoria romana partia da idéia de casa (domus) e fixava o conteúdo jurídico em razão do estabelecimento ou permanência do indivíduo naquele lugar "ubi quis larem rerunque ac fortunarum suarum summan cosntituit".

A definição romana é parcial por abranger tão-somente o domicílio voluntário, relegando ao esquecimento o domicílio legal. O domicílio consiste no fato singelo na sua materialidade: estabelecimento do lar e da constituição do centro de interesses econômicos.

Aubry e Rau pautaram a noção, segundo a qual o domicílio é uma relação jurídica existente entre uma pessoa e um lugar. Tal raciocínio seduziu muito a doutrina francesa da escola exegética conquistando a Itália que também enxergou no domicílio num vínculo de direito havido entre lugar e pessoa.

Coube, porém, à doutrina alemã restaurar o conceito na sua acepção originária. Os pandectistas reafirmaram a idéia romana retomando a noção de centro das relações e atividades, moradia habitual.

O BGB, em seu parágrafo 7º, não cuida de imaginar qualquer vinculação jurídica entre pessoa e o lugar em que se encontra e permite a definição de domicílio como centro de relações jurídicas de uma pessoa.

Os modernos doutrinadores franceses criticam a noção de vinculum iuris entre pessoa e o lugar e ratificam que não se trata de conceito abstrato e sim de concreto (De Page). O que é positivado francamente no artigo 102 do Código Francês é aquele onde a pessoa tem o seu principal estabelecimento.

Aliás, refutando veemente a idéia de vínculo jurídico entre lugar e pessoa, temos as idéias de Kant que aponta só ser possível relações jurídicas entre sujeitos de direito.

O Código Civil Brasileiro definiu (o que normalmente não o faz) domicílio em seu artigo 70 e atestou expressamente os dois elementos essenciais: a residência com ânimo definitivo provenientes de duas ordens distintas (uma externa e outra interna).

A residência é o lugar de morada normal, onde a pessoa estabelece sua habitação. Ruggiero estabeleceu gradação entre os conceitos de morada, residência e domicílio. Na residência, existe a morada de quem chega e fica. Não é a pousada eventual. O que quem aluga uma casa de praia ou de campo para passar o verão ou inverno tem ali sua morada, mas não tem a residência (que pressupõe estabilidade que pode ser maior ou menor).

Também os irmãos Mazeaud procuraram delinear a distinção entre os referidos conceitos. Ponderam que a residência se coloca a meio caminho entre a morada e o domicílio, mas não podemos aderir a essa doutrina por pressupor no conceito de domicílio a vinculação jurídica e abstrata entre a pessoa e o lugar do estabelecimento principal dos negócios jurídicos da pessoa.

Clóvis Beviláqua define domicílio da pessoa natural como "o lugar onde esta, de modo definitivo, estabelece a sua residência e o centro principal da sua atividade". É, sem síntese, a sede jurídica da pessoa, onde esta se presume presente para efeitos de direito e onde pratica habitualmente seus atos e negócios jurídicos.

Carlos Roberto Gonçalves identifica os dois elementos componentes do conceito do domicílio, sendo o primeiro de caráter objetivo que é a residência, correspondendo a mero estado factual material; e o segundo elemento de caráter subjetivo de natureza psicológica e íntima consistente no ânimo definitivo de fixar-se de modo permanente.

Da conjunção desses dois elementos que nasce o conceito de domicílio civil. A residência é elemento mais amplo que o domicílio e com este não se confunde. É simples estado de fato, enquanto que domicílio é uma situação jurídica.

Para o Direito brasileiro, o domicílio não é fato material de ser permanente que transforma a residência em domicílio, mas o fator psicológico, ou seja, o ânimo definitivo de fixar-se.

Todos os sujeitos de direito devem ter pois um lugar certo no espaço, de onde irradiem sua atividade jurídica. È ponto de referência protegido constitucionalmente como recinto inviolável.

Para o Codex Civil brasileiro a noção de domicílio assenta-se na idéia de residência, enquanto que, para a escola francesa, domicílio e residência são noções dissociadas (pois a residência é fato, e domicílio é de direito, assim um indivíduo pode ter tranqüilamente várias residências, mas em princípio, um único domicílio).

A residência como habitação efetiva perde-se naturalmente quando é deixada enquanto que o domicílio como sede jurídica da pessoa pode subsistir ainda que ali não resida nunca a pessoa. De certa forma, segue essa orientação do artigo 77 CC, ao prever o domicílio do agente diplomático.

É óbvio que não é qualquer residência que faz o domicílio para o direito pátrio, pois seria total a insegurança depender de elemento anímico de apuração subjetiva, isto é, a definitividade da residência. Desta forma, a equação sábia elaborada por Pothier que reúne os dois elementos, morada habitual ou residência.

Um estudante que passa dois anos na Europa cumprindo bolsa de estudos não tem ali seu domicílio, embora lá fixe sua residência. Um funcionário enviado para exercer temporariamente no exterior tem residência, mas lá não se domicilia, tanto assim que a lei substantiva não permite a fluidez do prazo prescricional contra este.

O que falta é o animus manendi que se torna incompatível com a temporariedade da missão ou da estadia para estudos.

A melhor doutrina alemã oferece a contraprova na evolução moderna da doutrina francesa reconhecendo a complexidade conceitual de domicílio, criando a teoria da eleição tácita de domicílio e a teoria do domicílio aparente.

Vigora a presunção de que, para efeito de fornecimentos, trabalhos e locações, as ações podem ser ajuizadas, na falta de eleição de domicílio expressa, no lugar em que o negócio foi ajustado ou executado (eleição tácita); ou então, no que se refere aos fornecimentos correntes, aceitaram os tribunais a competência do juiz do lugar da residência aparente.

O domicílio aparente se funda na intensa necessidade de fixar-se uma sede para as pessoas que tenham várias residências ou que se deslocam constantemente, e assenta-se como domicílio a aparência criada que fora construída em benefícios de terceiros, o que acarreta ser possível a invocação a seu favor do domicílio aparente.

Saliente-se que a citação editalícia é ultima ratio, pois só aplicar-se-á quando constatada por meio de contrafé de oficial de Justiça que o réu se encontra em lugar em incerto e não sabido.

Da fixação do domicílio decorrem certas conseqüências que atingem as relações jurídicas projetando-se nos seus efeitos por diversos ramos jurídicos.

Domicílio importa em traduzir a fixação espacial do indivíduo, o fator de sua localização para efeito das relações jurídicas, a indicação de um lugar onde o indivíduo está ou se presume que esteja dispensando aos interessados o esforço e a incerteza de andarem à suaprocura por caminhos instáveis.

No aspecto civilístico, resume o domicílio, o lugar de exercício de direitos, cumprimento de obrigações no sentido de sua exigibilidade (vide a questão de dívida portable e dívida quérable).

É o domicílio que concentra o eixo principal de interesses pecuniários da pessoa, fixando o lugar, portanto, da atuação relativa a esse complexus econômico. É no lugar do domicílio que se publicam os editais relativos aos direitos obrigacionais e ainda ao direito de família (proclamas). Também é em razão do domicílio que se caracteriza a ausência.

Quanto ao âmbito processual civil, é o domicílio que fixa a regra geral de competência (artigo 94 e seguintes do CPC).

A polivalência conceitual de domicílio nos conduz a vários tipos de domicílio como o político, fiscal e eleitoral que ora nos interessa quanto ao direito público e ora ao direito privado.

A doutrina moderna pontifica as diferenças. Morada é o lugar onde a pessoa se encontra de forma fugaz, sem qualquer vínculo de permanência. É, na realidade, o local onde a pessoa se encontra estabelecido naquele momento de forma absolutamente temporária, sem que haja qualquer vínculo que a ligue ao lugar. É a hipótese, por exemplo, do hotel onde o sujeito se hospeda durante as férias ou simples pernoite.

Residência é o local onde a pessoa estabelece sua habitação normal, de forma estável mesmo que sua permanência seja relacionada a períodos do mês ou da semana.

O elemento residência é primordial para caracterização do bem de família legal (Lei 8.009/90) que é impenhorável se for o único imóvel urbano ou rural utilizado como residência da entidade familiar.

Há residência no local onde a pessoa permanece geralmente em virtude de alguma atividade ou de algum vínculo que a liga ao lugar, como por exemplo, um imóvel alugado ou de sua propriedade que utiliza para passar finais de semana e férias. Trata-se de uma relação de maior estabilidade que a mera morada.

Domicílio, segundo traduz o próprio texto legal codificado, é a residência com ânimo definitivo (artigo 21 do CC/16 e artigo 70 do CC/02). É o local que a pessoa elege como sede de suas atividades principais e de sua morada de forma duradoura e não temporária.

O mais interessante dos elementos componentes do conceito de domicílio é o subjetivo ou psíquico e é apreciado à luz de um comportamento objetivo da pessoa, já que não podemos avaliar subjetivamente o animus do sujeito.

Ademais, o simples desejo de viver ou morar em outro lugar não descaracteriza o domicílio da pessoa. Se a pessoa aluga um apartamento e se muda, levando seus pertences, demonstra objetivamente o animus de transferir seu domicílio para aquele local, mesmo que seu desejo de fato fosse morar em um apartamento maior e melhor localizado.

A sistemática do direito francês, prevista no Código de Napoleão de 1804, é inviável a pluralidade ou a inexistência de domicílio para determinada pessoa. Assim, o domicílio, sob a ótica do direito gaulês, é uma relação de direito que se estabelece entre a pessoa e o local de seu principal estabelecimento, sendo inaceitável a completa inexistência deste ou a pluralidade de relações desta natureza. A pessoa deve ter um domicílio obrigatoriamente (artigo 102 do Código Civil francês).

Seguiu o Direito brasileiro o Direito alemão, pois é admissível tanto a inexistência como a unidade bem como a pluralidade de domicílios da pessoa. Assim poderá o sujeito ter um ou vários domicílios, ou até mesmo não ter nenhum domicílio.

A inexistência de domicílio se tipifica no caso dos nômades, artistas circenses, caixeiros-viajantes e etc.. Neste caso, considerar-se-á domicílio o local onde a pessoa se encontrar não significa que aquele local seja de fato o domicílio da pessoa, mas tão-somente que, para fins jurídicos, deve-se aplicar àquele local.

Uma ação proposta em face de uma pessoa que não tenha domicílio, a competência segue a regra geral do domicílio do réu - deve ser o local onde quer que se encontre. O que não significa, contudo, que aquele seja efetivamente o seu domicílio.

Ocorre a pluralidade de domicílio quando há mais de um centro de atividades habituais ou quando além de um domicílio voluntário possui um domicílio necessário. O artigo 72 do CC estabelece que cada local onde a pessoa natural desempenhe sua atividade profissional é também considerado seu domicílio.

Há duas espécies distintas de domicílio: voluntário e o necessário. O primeiro é aquele que decorre da escolha de seu titular, o qual fixa residência com ânimo definitivo por ato de vontade própria.

O necessário ou legal é decorrente da norma jurídica, ou seja, aquele que decorre da lei. E são várias as hipóteses, como:

a) domicílio dos incapazes é o mesmo de seus representantes legais (quer sejam pais, tutores ou curadores);

b) domicílio dos funcionários públicos reputa-se o local onde exercerem suas funções efetivas;

c) domicílio do militar na ativa reputa-se no local onde estiver servindo, sendo que o militar for da Marinha ou da Aeronáutica, seu domicílio será a sede do comando a que se encontrar imediatamente subordinado (artigo 76, parágrafo único do CC).

Os domicílios dos oficiais e tripulantes da Marinha Mercante têm domicílio no local onde o navio estiver matriculado.

Outras hipóteses de domicílios especiais é o caso dos domicílios eleitorais e domicílio contratual (artigo 78 do CC).

Em virtude da Lei de Introdução ao Código Civil, a lei do país em que for domiciliada a pessoa determina as regras sobre o começo e o fim da personalidade, o nome, a capacidade e os direitos de família (artigo 7º, Decreto-Lei 4.657/42). E, adiante, em seu artigo 10, estabelece que a sucessão causa mortis ou por ausência obedecerá à lei do país em que foi domiciliado o defunto ou o desaparecido qualquer que seja a natureza e a situação dos bens deixados.

Em relação às pessoas jurídicas, o domicílio da União é o Distrito Federal (é área geográfica erigida em unidade da federação, onde está situada a capital da República brasileira, na cidade de Brasília) e o dos estados, as suas respectivas capitais, o do município, o lugar onde funciona a administração municipal, o das demais pessoas jurídicas, o lugar onde funcionarem as respectivas diretorias e administrações ou onde elegerem domicílio especial nos seus estatutos ou atos constitutivos devidamente registrados.

Autarquias (são instituições autônomas criadas por lei e dotadas de personalidade jurídica, patrimônio e receita próprios, para executarem atividades típicas da administração pública) têm seu domicílio determinado pela lei que a criaram, em qualquer um destes em relação aos atos nestes praticados.

Se a administração ou a diretoria tiver sede no exterior, o domicílio da pessoa jurídica para as obrigações contraídas por qualquer uma de suas agências no Brasil será reputado no referido estabelecimento fixado no território nacional. Para fins de direito, deve-se aplicar àquele local o que se determinar quanto ao domicílio das demais pessoas.

Quanto às ações propostas pelas autarquias (como por exemplo, o Banco Central), determina a Lei 2.285/54 que serão ajuizadas no foro do domicílio do réu, cabendo a representação das mesmas nas comarcas do interior dos estados a procuradores especialmente nomeados para essa missão.

Para ações contra as sociedades de economia mista, é competente a Justiça Estadual (Súmula 517 do STF). As ações decorrentes de atos da mesa da Câmara de Deputados são de competência do juiz da Fazenda Pública da Capital Federal (Lei 2.664/55).

O Código Civil ainda admite o domicílio especial, também denominado de domicílio de eleição ou foro do contrato. O artigo 846, em seu parágrafo único, estabelece que o credor, além do seu domicílio real, poderá designar outro, onde possa também ser citado. O atual Código Civil Brasileiro de 2002 excluiu em boa hora o domicílio da mulher casada do rol dos necessários (artigo 76), até em respeito à proclamada paridade constitucional dos cônjuges em face da sociedade conjugal. Além disso, a fixação do domicílio do casal deverá ser em escolhido por ambos os cônjuges, que podem ausentar-se para atender a encargos públicos, ao exercício de sua profissão ou a interesses particulares relevantes, sem prejuízo da opção feita anteriormente (artigo 1.569 do CC).

Em alguns casos de domicílio necessário em particular, mas não apenas, o dos funcionários públicos, a constituição de um novo domicílio, legalmente imposto, não forçosamente acarretará o desfazimento do anterior, que poderá ser conservado na vida prática.

Caio Mário da Silva Pereira é pragmático a este respeito: "nos sistemas de unidade domiciliar, o indivíduo perde instantaneamente o domicílio que antes tinha e recebe por imposição legal o novo, que durará enquanto persistir a situação que o gerou. Mas nosso sistema, da pluralidade, não se verifica a perda automática do anterior. Pode verificar-se, no caso de o indivíduo estabelecer-se com residência definitiva no local do domicílio legal; mas pode não se verificar, se a pessoa conserva ainda o antigo, o que terá como conseqüência a instituição de domicílio plúrimo: o legal, decorrente do fato que o impõe, e aquele onde aloja a residência com ânimo definitivo".

A nossa sistemática quanto ao domicílio muito se afasta do modelo francês que admite com ortodoxia a unidade domiciliar e repudia a ausência de domicílio bem como a pluralidade. Esse entendimento é mais coerente com as inovações do Código Civil de 2002 em matéria de pluralidade domiciliar (artigo 72, caput).

Como já explicamos, a doutrina civilista franco-italiana tende ao princípio da unidade domiciliar, posto que o conceba como abstração e, portanto, não tolera que vigore vários vínculos simultâneos. Também o Direito suíço propugna pela unidade domiciliar mitigada, pois aceita que o comerciante ou fabricante possa ter um domicílio pessoal e um ou vários domicílios negociais.

No Direito inglês e no norte-americano, o domicílio é um só, mesmo que o indivíduo tenha mais de uma residência, pois que o primeiro adquirido tem precedência e predominância para fins jurídicos.

A idéia de multiplicidade de domicílios é aceita pelo BGB tendência a qual se filiou o Código Civil Brasileiro de 2002 (artigo 71 e seguintes) retomado, destarte, a tradição romana.

Assim, quando pessoa natural tem diversas residências, onde alternadamente viva, ou vários centros de ocupações habituais, cada um destes ou daqueles será considerado domicílio. Quanto às atividades profissionais, considera-se domicílio para efeito destas, o lugar onde são exercidas.

Sustentam com vigor a doutrina e a jurisprudência francesa, a italiana e a suíça, em geral bem como a maiores dos autores, a necessidade imperiosa de se ter obrigatoriamente um domicílio, lutando às vezes com maiores dificuldades para explicar casos em que concretamente este falte.

Retomando a tradição romana, o BGB e, na sua esteira, o código pátrio admitem que uma pessoa não tenha domicílio certo: aquele que não tenha residência habitual ou empregue sua vida em viagens, sem ponto central de negócios, terá domicílio o lugar onde for encontrado (artigo 73 do CC).

A mudança de domicílio compulsório ou legal exige maior atenção, pois que decorre da remoção da pessoa e, em razão dela, seja no que diz respeito à oportunidade, como ao local, como ainda à intenção, que no caso é presumida da aceitação da transferência.

Já quanto à mudança voluntária de domicílio requer-se maior cautelar, pois que ocorre quando da transferência da residência com intenção de mudar. Contendo dois elementos fundamentais: a transferência material do centro de negócios de um lugar para outro e o segundo elemento que é a intenção de fixar-se neste, a própria sede jurídica.

É tranqüila a prova do primeiro elemento que se perfaz pela materialidade da transferência, quanto ao segundo elemento pela comunicação às autoridades de onde sai, e para onde vai, ou na falta de uma outra, como inferência da própria mudança com as circunstâncias que a acompanharem: montagem de casa, aquisição de bens, estabelecimento profissional.

Problema correlato à mudança de domicílio é o abandono deste. O Direito francês e o suíço somente admitem que alguém abandone seu domicílio pela constituição de um outro e o Direito inglês automaticamente restaura o antigo domicílio, se não houver a criação de um novo.

O primeiro domicílio da pessoa natural é que se prende ao seu nascimento. É chamado de domicílio original ou de origem (que é em geral o domicílio de seus pais ou de seus representantes legais). Também é modalidade de domicílio necessário em face da condição de incapaz do recém-nascido.

Mais tarde, com a maioridade (hoje fixada aos 18 anos) ou um ato de escolha soberana, a pessoa pode mudar de domicílio ou simplesmente conservar o de origem.

O domicílio resultante de ato de vontade, ou de deliberação livre, é o chamado domicílio voluntário. Alguns autores enunciam que a regra é o chamado domicílio voluntário. Não apenas no sentido de que as demais formas de domicílio se apresentam como excepcionais ou derrogatórios da regra geral, como ainda na acepção de ser em princípio livre ao indivíduo fixar-se onde lhe apraza e exercer suas atividades e negócios onde lhe convenha.

Às vezes, o domicílio não traduz exatamente esta liberdade de ação do indivíduo, mas provém diretamente de sua condição individual e em razão da dependência em que se encontre relativamente a outra pessoa. É assim com o menor sob o poder familiar, cujo domicílio é do genitor sob cujo poder se encontre. É o do tutelado e curatelado quanto ao tutor e curador; e também do interdito, sem falar do preso.

Modalidade de domicílio necessário é o chamado domicílio legal, que surge por imposição de profissão ou atividade. Ademais nos sistemas de unidade domiciliar, o indivíduo perde instantaneamente o domicílio que antes tinha e recebe por imposição legal o novo que perdurará enquanto persistir a situação que o gerou.

Nesse sentido, é pertinente comentar o artigo 77 do CC, que prevê o domicílio para os agentes diplomáticos que gozam de imunidade internacional de jurisdição e, embora residentes no estrangeiro, consideram-se domiciliados em seu país de origem.

Esclarece Haroldo Valadão que tal prerrogativa surgiu com o fito de garantir a independência e a segurança dos representantes diplomáticos, amparada na ficção da extraterritorialidade e remonta à Convenção de Havana de 1928, sendo posteriormente ratificada e regulamentada pela Convenção de Viena de 1961.

Há três hipóteses de renúncia a esse privilégio que prefiro chamar de prerrogativa: mediante autorização do governo (se autorizado, comparece perante os tribunais estrangeiros) ou, por fim, caso a controvérsia gire em torno de bem imóvel localizado em território alienígena. Não se registrando tais exceções e não designando o agente diplomático onde tem no Brasil seu domicílio, deve ser demandado no último ponto do país onde o teve ou no Distrito Federal.

Em nosso sistema, ou seja, o da pluralidade domiciliar, não se verifica a perda automática do domicílio anterior.

O domicílio legal é, por exemplo, o domicílio do condenado, que é o lugar onde este cumpre a sentença (artigo 76 do CC). Isso se for encarcerado por mais de 180 dias (artigo 1.570 CC). Outro fato é que a pena superior a dois anos suspende automaticamente o poder familiar, o que poderá alterar o domicílio dos filhos menores do sentenciado.

Não é idêntico o tratamento positivado pelos vários sistemas legislativos. O direito norte-americano determina o domicílio da execução das penas apenas ao condenado à prisão perpétua. O Direito francês reconhecia domicílio especial no lugar do cumprimento de pena para o exercício dos direitos adquiridos na colônia penal. Houve abolição desses dispositivos legais pelas Leis de 1938 e 1942.

No Direito alemão, o condenado à reclusão não tem por domicílio o lugar de cumprimento da pena, porém conserva o seu primitivo. Cogita ainda o Direito francês da fixação domiciliar em razão da domesticidade, estabelecendo que os empregados e criados adquiram o domicílio por empréstimo, de seus patrões a quem servem.

O Direito pátrio não adota o princípio equivalente, seja nas relações empregatícias domésticas, seja no contrato de trabalho amparado pela legislação especial. Segue-se a regra geral que é a do local escolhido como residência definitiva, sendo proibida a cláusula contratual que eleja o domicílio do trabalhador em seu franco prejuízo.

É de se assinalar o busilis quando ocorrer o caso de o empregado trabalhar habitualmente em casa dos patrões, lá também residindo. Mas, como nosso sistema admite com facilidade a pluralidade domiciliar, nada impede que seja o domicílio laboral considerado como domicílio legal ou necessário e o domicílio voluntário, aquele eleito pela vontade do empregado e onde se abriga sua família, pertences e centro de negócios.

Também se comenta sobre domicílio geral e o especial. O primeiro tanto pode ser domicílio voluntário como necessário. Contrapõe-se ao domicílio especial que é fixado para sede jurídica para cumprimento de certa obrigação. Em geral, é resultante da avença e é chamado de domicílio contratual (artigo 78 do CC).

Acautelem-se os contratantes, pois nem sempre a eleição de domicílio fulcrada em contrato poderá prosperar, ainda que seja feita de modo expresso e inequívoco, ainda que aceita por ambos.

O domicílio por eleição, contratual ou especial é restrito ao cumprimento obrigacional e não prejudica o domicílio geral que subsiste para toda relação jurídica afora do contrato.

Há mesmo quem sustente doutrinariamente que não existe domicílio de eleição, visto que não possui poder derrogatório sobre os efeitos normais do domicílio real (Planiol, Ripert e Boulanger) o que não é acolhido pelo direito pátrio e permite francamente a configuração do domicílio especial.

Cumpre distinguir com exatidão a configuração do domicílio especial, do domicílio real, porque objetivamente se situa em determinado lugar. É ostensivamente o local da fixação residencial do indivíduo. Ademais, como é óbvio, o domicílio de eleição é fictício.

A domicílio de eleição não pode alterar a competência ex ratione materiae dos juízes e nem atingir princípios de ordem pública (como por exemplo, os que protegerem o trabalhador, o consumidor, o idoso, o incapaz, as pessoas jurídicas de direito público, etc.).

Quanto à cláusula de eleição de foro muito comum nos contratos bancários e também no contrato de consumo, tem sido considerada como abusiva tendo em vista o artigo 101, I, do CDC e artigo 51, IV e XV do mesmo diploma legal (vide também julgamento pelo STF da ADI dos bancos e também a Súmula 297 do STJ).

Há muito que se discute na jurisprudência pátria sobre a eficácia dessa cláusula quando se tratar de contrato de adesão mesmo quando este não assume a forma de contrato de consumo.

Vige a cláusula de eleição de fora nos contratos locatícios em razão do artigo 58, II, da Lei 8.245/91 voltada para locação de imóveis urbanos precipuamente para fins residenciais, comerciais ou industriais, e não sua localização restrita ao perímetro urbano.

É reconhecida ao devedor a possibilidade de ser demandado no foro de seu domicílio, segundo consta do artigo 94 CPC, certamente para lhe facilitar a adimplir a prestação devida. Em regra geral, a obrigação deve ser cumprida no domicílio do devedor tendo, portanto, de natureza quérable (artigo 327 do CC) salvo previsão em contrário em contrato paritário.

Há, portanto, renúncia ao esse direito, o que pode acarretar a nulidade de tal cláusula se inserida em contratos de adesão tendo em vista os termos do artigo 424 do CC e ainda a hermenêutica recomendável que é sempre em prol do aderente.

A fixação do domicílio das pessoas jurídicas obedece a critério diverso do que preside a determinação domiciliar da pessoa natural.

Tem seu domicílio, sua sede no centro de sua atividade dirigente. E, em geral, a sede social é fixada livremente de forma explícita no ato constitutivo e deve ainda constar do Registro Público.

Mas é possível existirem vários domicílios da pessoa jurídicos e todos dotados de relativa autonomia. Onde surge a faculdade de considerar como sede social para o negócio realizado o estabelecimento (departamento, filial ou agência) que nele tiver tomado parte (artigo 75, parágrafo 1º CC).

No Direito francês, a regra da unidade domiciliar constitui como domicílio o local do estabelecimento principal da entidade. A jurisprudência francesa mitigando o rigor da regra admite a eleição tácita do domicílio reconhecendo também como domicílio as sucursais e outras filiais e agências da referida pessoa jurídica.

Cristiano Chaves aponta ser impossível dissociar o domicílio da dignidade da pessoa humana, o que reforça sobremaneira a importância do tema inclusive no nível constitucional, sendo o "refúgio dos refúgios" que é acobertado pela inviolabilidade, um verdadeiro templo de coisas íntimas, daí ligado também ao direito à privacidade e à intimidade. O presente artigo naturalmente é apenas um pequeno approach sobre tema que nos revela ser um complexo conceito.

Referências:

- DANTAS, San Tiago. Programa de Direito Civil 2ª. Tiragem Parte Geral, Rio de Janeiro, Editora Rio, 1979;

- TEPEDINO, Gustavo, Heloisa Helena Barboza, Maria Celina Bodin Moraes. Código Civil Interpretado conforme a Constituição da República. Volume I Parte Geral e Obrigações (art. 1º. ao 420), Rio de Janeiro, Editora Renovar, 2004;

- DE FARIAS, Cristiano Chaves. Direito Civil - Teoria Geral. 2ª. Edição, Rio de Janeiro, Editora Lúmen Juris, 2005;

- PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Rio de Janeiro. Editora Forense, 2004;

- GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil brasileiro: parte geral, v.1, São Paulo, Editora Saraiva, 2003;

- GAGLIANO, Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona Filho. Novo Curso de Direito Civil, Parte Geral, 5ª. Edição, São Paulo, Editora Saraiva 2004;

- TARTUCE, Flávio. Direito Civil. Série Concursos Públicos volume 1, 2 e 3 São Paulo, Editora Método, 2005/2006;

- LEITE, Gisele. Considerações sobre o contrato de adesão. Jus Vigilantibus, Vitória, 8 out. 2006. Disponível em: < http://jusvi.com/doutrinas_e_pecas/ver/22678 > Acesso em 9 de outubro de 2006;

- Considerações sobre a personalidade, pessoa e os direitos da personalidade no Direito Civil Brasileiro. Jus Vigilantibus, Vitória, 22 set. 2006. Disponível em: < http://jusvi.com/doutrinas_e_pecas/ver/22594> Acesso 9 out. de 2006;

- O contrato contemporâneo. Jus Vigilantibus, Vitória 4 ago. de 2005. Disponível em: http://jusvi.com/doutrinas_e_pecas/ver/16891.

Revista Consultor Jurídico, 26 de janeiro de 2007

Sobre o autor

Gisele Leite: é professora, mestre em direito, e conselheira do Instituto Brasileiro de Pesquisas Jurídicas."

E, finalmente, agora fazendo consulta na rede mundial da intranet, através do sitehttp://www.justicafederal.gov.br/portal/publicacao/engine.wsp?tmp.area=115 - Portal da Justiça Federal - Enunciados aprovados III - Jornada de Direito Civil, temos o seguinte enunciado:

"Enunciado 215 - Art. 998: A sede a que se refere o caput do art. 998 poderá ser a da administração ou do estabelecimento onde se realizam as atividades sociais".

Fato relevante é que a presente matéria reveste-se de caso concreto, senão vejamos: "...Já mantivemos contato com a Tabeliã responsável pelo Cartório de Registro Civil de Rio Bonito e, mesmo apresentando a certidão de inteiro teor dos atos registrados no Registro Civil das Pessoas Jurídicas da cidade do Rio de Janeiro, tivemos recusado, de forma verbal, nosso pedido de registro do último ato atinente, ou seja, no presente caso, registro em Rio Bonito a partir da segunda alteração.." (fl. 02 - item IV).

Neste sentido vale aqui transcrever o recente parecer da lavra do culto Juiz de Direito Auxiliar da Corregedoria-Geral da Justiça - Fabio Ribeiro Porto, nos autos do procedimento n.º 2.007 - 102478, o qual foi acolhido na íntegra por Vossa Excelência: "...De outro lado, cabe destacar que, em se tratando de fato concreto, foge do âmbito desta instância administrativa a apreciação de tal matéria, devendo o interessado, se quiser valer-se do disposto no artigo 198 da Lei n.º 6.015/73, a fim de dirimir a dúvida.Assim, a Corregedoria só emite orientações de ordem genérica, conforme sedimentado entendimento administrativo (cf: processos números: 2005.183472, 2005.195422, 2006.032384, 2006.035476) sendo da competência do Juiz de Direito com atribuições para os feitos dos Registros Públicos dirimir dúvidas e decidir as consultas formuladas por tabeliães e oficiais de registro público, na forma do art. 89, III do CODJERJ.Desta forma, não pode o interessado se valer do presente expediente como a finalidade de se esquivar do procedimento de dúvida previsto no art. 198 da Lei de Registro Público, sendo certo que a discussão em tela envolve caso concreto e não havendo falta funcional a ser apurada nada mais se pode fazer no presente procedimento.Neste diapasão, nada mais havendo a prover, opino pelo arquivamento do presente procedimento, devendo ser dada ciência às partes, da presente decisão, com envio de cópia da mesma...".

O Professor Walter Ceneviva em sua obra Lei dos Registros Públicos Comentada, 17ª edição atualizada, São Paulo, Ed. Saraiva, 2.007, p. 434, nos ensina que: " ...Dúvida : o que é - Dúvida é pedido de natureza administrativa, formulado pelo oficial, a requerimento do apresentante de título imobiliário, para que o juiz competente decida sobre a legitimidade de exigência, feita como condição de registro pretendido. A LNR inclui, entre os deveres dos delegados registrais e notariais, o de " encaminhar ao juízo competente as dúvidas levantadas pelos interessados". A regra mencionada, embora posterior ao art. 198, não revogou. Torna-se necessário compatibilizar os dois textos legais, de modo as lhes assegurar interpretação uniforme, pois a dúvida é declarada pelo oficial e não pela parte..."

Prosseguindo, o ilustre renomado Professor , assevera, ainda: "...Quem pode declarar a dúvida - Dúvida é do oficial. A jurisprudência hesitou, no passado, ora admitindo ora recusando, a chamada dúvida inversa, declarada pela parte ao juiz, com afirmativa de exigência descabida do serventuário. Não se viabiliza na LRP a dúvida inversa. A parte pode dirigir-se ao juiz, na forma da legislação estadual, queixando-se de recusa do oficial de, no prazo, proceder a certo registro ou declarar dúvida. Não pode substituir-se ao serventuário na própria declaração, como, aliás, resulto de outros textos legais que a ela se refere. Demais disso, o requerente da dúvida inversa não tem a garantia da prenotação. No Estado de São Paulo, a Corregedoria-Geral da Justiça chegou a impor aos serventuários o dever de prenotarem o título em casos de dúvida inversa. Era imposição sem nenhum apoio legal. As nos corregedoras devem completar e esclarecer as finalidades da lei, assim contribuindo para sua melhor aplicação. O título deve ser apresentado ao Cartório, onde será prenotado, para obediência de ordem de apresentação ( art. 182). Na dúvida inversa nem há apresentação ao oficial nem a ordem rigorosa do ingresso do título é assegurada (art. 191). É superior em hierarquia e na doutrina a orientação do STF, proclamada no RE 77.966-MG, em acórdão lapidar, da lavra do eminente Min. Aldir Passarinho, cuja a ementa é bem clara a respeito, quando a nota: "de observar que tendo sido a formulação da dúvida anterior à LRP, jurisprudência era vacilante quanto a admiti-la ou não sob a forma da chamada dúvida inversa, e que era aquela dirigida diretamente pela parte ao juiz, ao invés de o ser pelo oficial de registro. Após a LRP a dúvida tornou-se realmente inviável..."(em sua obra Lei dos Registros Públicos Comentada, 17ª edição atualizada, São Paulo, Ed. Saraiva, 2.007, p. 435).

Nesta linguagem, opino no sentido que caberá ao Consulente reapresentar o seu título junto a Serventia do 1º Ofício da Comarca de Rio Bonito, caso em que, persistindo a exigência, deverá solicitar a Senhora Oficial que suscite a dúvida ao Juízo Competente para dirimi-la, nos termos do que preconiza o artigo 198 da Lei de Registros Públicos, n.º 6.015, de 31 de dezembro de 1.973 c/c os artigos 30, inciso XIII, da Lei n.º 8.935, de 18 de novembro de 1.994 e 89, inciso III, do Código de Organização e Divisão Judiciárias do Estado do Rio de Janeiro e, finalmente que o presente procedimento seja encaminhado ao arquivo.  Rio de Janeiro, 05 de novembro de 2007.

ANDREIA QUINTELA

Juiz de Direito

Auxiliar da Corregedoria-Geral da Justiça

Procedimento nº 2.006 - 264084

D E C I S Ã O

Acolho o parecer da ilustrada Juíza Auxiliar para determinar que se dê ciência ao Consulente no sentido de reapresentar o seu título junto a Serventia do 1º Ofício da Comarca de Rio Bonito, caso em que, persistindo a exigência, deverá solicitar a Senhora Oficial que suscite a dúvida ao Juízo Competente para dirimi-la, nos termos do que preconiza o artigo 198 da Lei de Registros Públicos, n.º 6.015, de 31 de dezembro de 1.973 c/c os artigos 30, inciso XIII, da Lei n.º 8.935, de 18 de novembro de 1.994 e 89, inciso III, do Código de Organização e Divisão Judiciárias do Estado do Rio de Janeiro.

Publique-se. Cumpra-se. Após, arquive-se.

Rio de Janeiro, 05 de novembro de 2007.

Desembargador LUIZ ZVEITER

Corregedor-Geral da Justiça

 

 

Este texto não substitui o publicado no Diário Oficial.